A História que Eu Sei (V)

A TRANSIÇÃO (1945/1947)
Antes de se mergulhar no universo político destes anos de transição, algo há que se falar sobre as transformações ocorridas, em Piracicaba, junto à Igreja Católica, especialmente pela influência ainda maior que haveria de exercer na vida política do município. Desde o Império, a crônica e os historiadores informam da presença política da Igreja Católica, ao lado da qual a cidade também nasceu. E, nos anos 40, já era longa a influência do Padre Rosa (Manoel Francisco Rosa), depois reverenciado como Monsenhor Rosa, cuja adesão e simpatias junto ao velho PRP conservador eram claras e públicas.

Em 1945, a Nunciatura Apostólica anunciava a criação da Diocese de Piracicaba. E o Bispo designado era D. Ernesto de Paula, que exercia o episcopado na Diocese de Jacarezinho, no Paraná. O perfil de D. Ernesto de Paula não deixava margem a dúvidas: Era um homem com absoluta consciência de sua autoridade episcopal, um “príncipe da Igreja” em relação ao próprio cargo, politicamente conservador, e um administrador de reconhecida capacidade. D. Ernesto tomou posse no dia 8 de Setembro de 1945, quando o “dr. Bentinho”, Bento Luiz Gonzaga Franco, respondia pela Prefeitura. Algum tempo após a sua posse, D. Ernesto conseguiria trazer para a Diocese um padre que ele ordenara em Jacarezinho, José Conceição Paixão, o Padre Paixão, seu homem de confiança, também de perfil aristocrático e conservador. Dois problemas – além das dificuldades de implantação da Diocese – estimulavam a ação apostólica de D. Ernesto de Paula: a presença dos protestantes em Piracicaba, especialmente através da longa tradição do Colégio Piracicabano, da Igreja Metodista, e a Maçonaria. E tão logo D. Ernesto se estruturou – com o apoio de autoridades locais e aproximando-se do velho “coronel”, Luiz Dias Gonzaga – a ponto de dar início à Catedral de Santo Antônio e de levar a construção em frente, as suas preocupações se voltaram para a influência do Colégio Piracicabano, aquele que fora criado por Miss Martha Watts ainda no século anterior.

Os tempos não eram ecumênicos. Os protestantes eram tidos como hereges, infiéis, de forma que os católicos não poderiam e nem deveriam, por instruções hierárquicas, coexistir e conviver com eles. O mesmo dizia respeito à Maçonaria. E o Colégio Piracicabano, tradicionalmente Metodista, tinha – para inquietar ainda mais os católicos tidos como disciplinados e ortodoxos – a marca histórica do apoio maçônico, que acontecera através dos Moraes Barros, principalmente Prudente de Moraes. Tratava-se, no entanto, de uma escola de prestígio ímpar em todo o Brasil, onde estavam as melhores inteligências docentes, com um ensino avançado e progressista que levava grande número de famílias católicas a fazer questão de que seus filhos estudassem no respeitável “O Piracicabano”.

A tradição do ensino metodista de Piracicaba vinha de longa data, desde o Império, em 1881. Quando D. Ernesto de Paula chegou a Piracicaba, o Colégio Piracicabano tinha, em seu quadro docente, professores e simpatizantes de renome, como João Dutra, Guilherme Vitti, Demóstenes Santos Corrêa, Thales de Andrade, Júlio Diehl, Germano Benecase, Dulcina Filetti, Manassés Pereira, entre outros. Era uma tradição de ensino de grande peso: em 1920, houvera sido aberto o Internato Feminino; em 1932, foi reconhecido oficialmente o seu curso ginasial; em 1934, criava-se o Internato Masculino e era reconhecido como Estabelecimento Livre de Ensino

Secundário. Além disso, o Colégio Piracicabano havia criado grande tradição esportiva para os seus alunos, especialmente no basquetebol, natação e vôlei feminino. Para se avaliar essa atenção especial aos esportes, basta lembrar-se que a Liga Piracicabana de Basquetebol foi fundada, em 1933, entre outros, pelo prof. Clyde Cooper, diretor do Colégio. Entre os grandes atletas piracicabanos, que foram alunos de “O Piracicabano”, estiveram Gatão, Idiarte, De Sordi e, mais tarde, Wlamir Marques.

A construção do Colégio Salesiano Dom Bosco foi parte da estratégia de D. Ernesto de Paula para enfrentar os protestantes e o Colégio Piracicabano. De princípio, o seu plano era fazer com que o Colégio Nossa Senhora D’Assunção – já antigo e tradicional- retomasse a escola mista, de homens e mulheres, que tinha sido interrompida pelas Irmãs de São José. Estas, porém, não aceitaram a pressão do Bispo e mantiveram a decisão de o Colégio Assunção ser, apenas, um educandário para moças, medida, aliás, que fora adotada tão logo D. Ernesto de Paula chegara e instalara a Diocese. D. Ernesto nunca soube – e não sabe até hoje, quando ultrapassa os seus 90 anos de idade – porque as freiras extinguiram a sessão masculina do Colégio e não aceitaram o seu pedido de reconsideração. O fato é que, a partir daí, o Bispo Diocesano passou a visitar todas as congregações religiosas dedicado ao ensino, pedindo-lhes que fundassem um educandário católico para meninos e rapazes em Piracicaba.

As dificuldades eram sempre as mesmas: com quais recursos? Pois a Diocese não tinha recursos e, mesmo para construir a Catedral, D. Ernesto encontrara grandes dificuldades. A primeira contribuição para a Catedral foi de Filomena Grisolia, uma senhora piedosa, que ofereceu 50 cruzeiros – “50 mil réis” – para as obras. Havia entusiasmo pela construção, mas o povo não participava. D. Ernesto de Paula não era simpático e um fato aborreceu ainda mais a população: D. Ernesto transferira, da Matriz de Santo Antônio para a Igreja de São Benedito, a imagem do santo padroeiro. As reações foram contrárias, a popularidade do Bispo caiu. Habilidoso, porém, ele criou a Pia União de Santo Antônio, a Federação Mariana masculina e feminina, estimulando movimentos espirituais e criação de associações. Promoveu as grandes quermesses que passaram a angariar fundos para as obras da Catedral e, ao mesmo tempo, aproximou-se de uma população mais simples e dócil, através da Festa do Divino e da Irmandade de São Benedito.

Quanto ao colégio católico para meninos e rapazes, porém, D. Ernesto viu as portas fechadas. Sua última alternativa foi recorrer ao Papa Pio XII indo até Roma para uma audiência especial. Expôs o problema ao Papa: precisava da instituição de um colégio católico para fazer frente ao ensino metodista em Piracicaba. É D. Ernesto de Paula quem o diz: “Ao ser recebido por Pio XII, este ficou impressionado com a exposição, chegando mesmo a por as mãos na cabeça ao saber da existência de um grande colégio protestante na minha diocese, cujos alunos, na sua grande maioria, pertenciam a famílias católicas.” Foi o Papa Pio XII quem interveio para que os salesianos viessem se instalar em Piracicaba, participando do projeto de ensino católico do Bispo Ernesto de Paula. Isso iria refletir, nos anos seguintes, de maneira decisiva na política local, especialmente com os vínculos que se estabeleceram entre o Bispo Ernesto de Paula e a UDN, pois, quando da construção do Colégio Dom Bosco onde atualmente se encontra, foi o Prefeito Luiz Dias Gonzaga – então líder da UDN quem procedeu à desapropriação do terreno, cedendo-o aos salesianos. E foi o Bispo Ernesto de Paula quem, já no final dos anos 50, criou um impasse político na cidade, mobilizando-se contra a candidatura de um protestante – o canavieiro Domingos José Aldrovandi – forçando padres e associações religiosas a participar ativamente da campanha de um católico, Francisco Salgot Castillon.

Os padres de D. Ernesto de Paula eram dóceis à sua orientação, participando inteiramente de suas ordens e decisões. Entre eles, estava ojá referido Padre Paixão a quem D. Ernesto dava atribuições diplomáticas em suas relações com o poder – mais José Conceição Meirelles, Francisco Mutschelle, Rosário Pazzianotlo, Luiz Giuliani, além do já quase venerando Monsenhor Rosa. Todos eles atuaram, junto aos fiéis, em momentos político-eleitorais. A Igreja Católica, com D. Ernesto de Paula, caminhou ao lado dos herdeiros do velho PRP e dos “integralistas”, que se haviam abrigado no PRP (Partido de Representação Popular), com forte influência entre uma área de intelectuais e na zona rural. Eram tempos da Igreja Católica estreitamente vinculada ao poder constituído. E, nesse aspecto, a atuação de D. Ernesto de Paula foi de grande eficiência e competência.

Na prática, a instalação da Diocese de Piracicaba criava condições para que a religiosidade popular se voltasse para preocupações moralistas e moralizantes, permitindo o surgimento de verdadeiras cruzadas em nome da Moral que se desenvolviam através de Filhas de Maria, Congregados Marianos, Cordígeros, etc. Mais de 20 anos depois, isso se repetiria, já em outra linha de atuação, com o Movimento de Cursilhos de Cristandade, que procurou, também, “evangelizar o ambiente político”, estimulando leigos, profissionais da comunicação e outros a uma participação ativa na política e na vida partidária.

*CONTINUA

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