Uma aldeia chamada Piracicaba (3)

Quilombo em Corumbataí

O primeiro registro de fuga de escravos (v. aqui) para a formação de quilombo aparece em 5 de março de 1804. Nessa data, o sargento-mor, Carlos Bartolomeu de Arruda Botelho reclama providências ao governo da Província para os tumultos e a fuga de presos, que procuravam abrigo num quilombo “que se diz estar nas cabeceiras do Rio Corumbataí, para as partes de Araraquara.” Arruda Botelho fala do pânico da população.

A perseguição aos escravos fugidos revelou a truculência de governantes e dos proprietários de terra. Em 26 de maio daquele ano, Arruda Botelho dá conta, ao governo da Província, de seus trabalhos para recuperar os rebelados. E sua narrativa dá margem para se ter pálida idéia da crueldade dos tempos. Escreve o sargento-mor: “..até que chegavam a aparecer os negros que tinham fugido há perto de quatro meses, desenganados de que não poderão incorporar-se ao quilombo que procuravam, mortos de fome, magros, sarnosos e sempre morreu um escravo, de Bento Gls. que por mais velho não pode resistir à falta de sustento com que andavam pelos matos.”

Uma terra escravagista

Piracicaba, desde os primórdios, revelou-se escravagista, não sendo, portanto, de estranhar as relações conflituosas e, ao mesmo tempo, afetivas entre brancos e negros, a relação patriarcal. Em 1836, um levantamento feito pelo Marechal D.P. Muller, para o “Almanak de São Paulo, registra-se haver, em Piracicaba, “apenas uma mulher índia; entre os pretos africanos, dois homens e uma mulher livres.; escravos negros, havia 1.756 homens 622 mulheres.”

No entanto, Maria Celestina Teixeira Mendes Torres – em estudo sobre a evolução da propriedade rural em Piracicaba, no Império – apresenta números mais expressivos, de 1828. Naquela data, havia 1.089 fogos (residências) em Piracicaba e os moradores somavam 8.311 pessoas. Dessas, 2.303 eram negros escravos e 90 mulatos. Entre os principais “proprietários de escravos” estavam o administrador de engenho Francisco de Paula Camargo, com 92 escravos; o Senador Vergueiro com 76; a fazendeira Ana Maria de Toledo, com 69; o senhor de terras, José da Costa Carvalho, com 58.

No ano de 1887, o “Almanak Commercial de São Paulo” publicava as cidades paulistas com o maior número de escravos. Piracicaba era a terceira, com 5.663 escravos, após Campinas (15.427) e Bananal (6.903).

A influência do escravo

Gilberto Freyre já acentuara que, no Brasil, a influência não foi da raça negra, mas do escravo e da escravidão. Pois, como escravos, os negros tiveram a sua verdadeira cultura violentada, usando de artifícios para manter o núcleo dela diante da violentação do homem branco. Em Piracicaba, obviamente, ocorreu o mesmo. E, também, os mesmos preconceitos. Ainda no Século XX, estes eram, ainda, freqüentes, apesar das grandes campanhas de conscientização contra preconceitos raciais.

Por volta da década de 1960, a doutora em Linguística, Ada Natal Rodrigues, fazendo um estudo sobre “o dialeto caipira na região de Piracicaba”, registrara o forte preconceito contra negros na zona rural do município, para onde, após a abolição, os escravos foram expulsos ou onde buscaram refugiar-se. Moradores da região referiam-se a negros como pessoas que “cometem crimes” ou que “não têm educação.”

No entanto, ao longo do Século XX, influência e a presença não eram mais apenas do negro escravo, mas, especialmente, da raça negra, fixada também na cultura caipiracicabana. Nas festas populares, no sincretismo religioso de que resultou o candomblé, no culto dos orixás, nas crendices, nas lendas, nas superstições, na língua, na cozinha. E na música, nos esportes, na dança. Na saúde, na política, no magistério, nas profissões liberais.

Em Piracicaba, os negros, no início do Século XX, criaram uma das principais entidades negras do Brasil, a atual Sociedade Beneficente 13 de Maio. A semente dela foi plantada em 1901, quando se criou a Sociedade Beneficente Antônio Bento, em homenagem ao abolicionista negra Antônio Bento de Souza e Castro. Em 1907, transformou-se em Sociedade Beneficente 13 de Maio.

Vinculada à sociedade, surgiram atividades culturais, artísticas. Assim, houve o jornal “O Patrocínio” (19828), uma escola de música em 1932, o “Nosso Jornal” que funcionou de 1958 a 1962, todos como expressão da cultura negra.

Índios na lenda-mãe

A presença indígena permaneceu até mesmo na lenda-mãe de Piracicaba, a que criou rusgas entre Santo Antônio e Nossa Senhora dos Prazeres. Era ela a padroeira do Morgado de Mateus (v. aqui) , mais Santo Antônio e São Luiz, conforme seu nome. E Santo Antônio, o padroeiro também do Capitão Correa Barbosa.

O orago de Piracicaba era Nossa Senhora dos Prazeres, em capela que teria sido erigida na praça principal da povoação, à margem direita do rio, nas proximidades de onde, em nosso tempo, está o Santuário da santa.

Diz a lenda que o Capitão Povoador, retornando de encontro com o Morgado de Mateus, substituiu a imagem de Nossa Senhora pela de Santo Antônio, espalhando o boato de que “a bugrada” – referindo-se aos índios da povoação – haviam dado o sumiço na santa. E que Nossa Senhora, então, magoada, foi vista indo-se embora, levada por anjos, na curva do rio, lamentando-se e fazendo a profecia: “Esta povoação nunca será uma cidade grande.”

O índio e a linguagem

A marca do índio permanece viva na cultura brasileira e, portanto, na piracicabana. Entre nós, o nome da própria cidade, Piracicaba, é herança indígena. “Lugar onde o peixe pára”, “lugar onde os peixes chegam”, “lugar onde se ajunta o peixe”, “rio por onde sobem os peixes”, a palavra tupi-guarani expressa uma idéia: abundância de peixes. E se, hoje, o piracicabano se envaidece de se dizer “caipiracicabano”, estamos, na verdade, proclamando uma verdade a partir de palavra indígena: caipira. A idéia central indígena, na palavra caipira, acaba retratando o sertanejo, o andante pelas matas, à beira do rio: caá (mato), í (água), pira (peixe). Se não usar-se a palavra caipira, a idéia é expressa em outro vocábulo, caboclo, que identifica o mestiço de índio e branco.

A região banhada pelo Tietê e Piracicaba, entre outros, está coalhada de topônimos caipiras: Capivari (rio das capivaras), Mombuca (rachadura, ou tipo de abelha se for “mumbuca”), Itu (salto, cascata), Cabreúva (pinga ou árvore), Jundiaí (rio dos bagres), Sumaré (nome de uma orquídea), Indaiatuba (lugar de muitas palmeiras) e outras. As cidades têm bairros e distritos com nomes indígenas. Em Piracicaba, alguns deles: Tupi (pai supremo, o pai), Caiubi (folha azul, anil), Ibitiruna (nuvem preta), Piracicamirim (lugar pequeno de peixe parar), Jupiá (espinheiro), Itapuã (pedra erguida).

Na natureza, na alimentação, nas artes, as palavras de origem indígena são parte extraordinária do cotidiano. Objetos de uso pessoal e domésticos, a decoração das casas, dão mostras de como o povoador de origem portuguesa absorveu parte dessa cultura indígena, influenciado, também, por costumes africanos. O historiador Joaquim Silveira Mello (v. aqui) , numa descrição da abertura da “Estrada do Picadão de Cuiabá a Piracicaba”, deixou páginas memoráveis que formam um retrato de Piracicaba em tempos passados.

Assim, quando se vai à pesca de lambaris no rio Piracicaba ou comer-se uma piapara na rua do Porto, estamos, também, prestando homenagem à língua indígena. Pescar e preparar o peixe são, também, heranças indígenas. Essa especialidade é destacada por Joaquim Silveira Mello ao descrever um almoço servido por Ana de Moraes, filha de Maria Flor de Moraes, a amante do Sargento Mor Carlos Bartolomeu de Arruda Botelho: “Não é debalde que dizem que peixe só é bem feito e temperado nas cozinhas das casas dos pescadores.”

A arte indígena

O mestre Archimedes Dutra, um dos mais notáveis artistas plásticos piracicabanos de todos os tempos, registrou as marcas da arte indígena em Piracicaba, em trabalho de doutorado na ESALQ, “A contribuição de Piracicaba na arte nacional.” O estudo de Archimedes Dutra se faz a partir de descobertas arqueológicas – tidas, então, como acontecimento sensacional, do cientista José Anthero Peireira Júnior. Trata-se de “Inscrições rupestres em território paulista”, publicado pela revista Anhembi (Ano XI, nº 128, julho de 1961, vol.XLIII), dando conta de inscrições encontradas em pedras de Piracicaba.

Na realidade, referem-se a peças e inscrições encontradas no chamado “cemitério dos paiaguá”, onde está o atual Parque Ermelinda Ottoni de Souza Queiroz, contíguo à empresa Boyes. Archimedes detalha o local e a descoberta: “inscrições rupestres e sinalizações de arte (…) gravadas nos paredões de basalto, à margem esquerda do rio Piracicaba, no espaço que permeia a Casa do Povoador e a rua 13 de maio, tomando toda a linha do pitoresco e conhecido Bosque do Miranda”, o local já referido.

Dando feição também poética à descoberta, Archimedes louva a arte piracicabana como herança arquetípica dessa cultura indígena, dos paiaguá. Escreve a respeito das peças:

“importantes peças trabalhadas em cerâmica e pedra, na feitura de objetos de uso comum, de utensílios e urnas funerárias (igaçabas), caprichosamente decoradas. (…)”

E referindo-se a “uma preciosa quão valiosa igaçaba de cacique paiaguá”, encontrada no cemitério dos índios, descreve-a em sua arte:

“arte regional indígena, de ótima estrutura, estilizando a forma de uma enorme sapucaia e, todo ele, pintado com tintas naturais, de preparação própria, isto é: emulsão de argila branca (branco), terra vermelha (roxo-terra) e barro preato em mistura com cera de abelha cabocla (preta). Uma delicada barra ornamental, com filetes pretos sobre fundo branco, ao alto da igaçaba, completa a decoração da peça.”

Archimedes Dutra, no bairrismo caipiracicabano, louva a nação paiaguá que ocupou as terras piracicabanas: “As mensagens de sensibilidade artística dos intrépidos índios paiaguás aí estão, mostrando o porquê da sucessiva e crescente sensibilidade artística do piracicabano.”

Numa aldeia chamada Piracicaba, o índio enterrou a sua alma. E o negro deixou o sangue, suor e lágrimas. A história apenas começara, como que aguardando outras raças que acreditaram na construção de uma aldeia global.

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