Bacia do rio Piracicaba comemora os 100 anos de Nelson de Souza Rodrigues, visionário na cultura e na natureza (parte 3)

A paixão pela piscicultura, de São Paulo a Pirassununga

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O agrônomo com um exemplar do raríssimo cascudo-espinho (foto: Adriano Rosa)

Quando trabalhou na Vera Cruz, Nelson de Souza Rodrigues já era agrônomo formado, em 1948, pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), de Piracicaba. Naquela época, nem sonhava que um dia voltaria à cidade para grandes feitos.

Após o intenso período de inserção no extraordinário sonho liderado por Franco Zampari e Ciccillo Matarazzo, Rodrigues passa a chefiar o Setor de Documentação e Divulgação da Divisão de Conservação do Solo da Secretaria de Agricultura do Estado. O trabalho era documentar os serviços de  conservação do solo e combate à erosão, produzindo um boletim bimensal sobre a temática. Em 1954, ainda na capital, passa a chefiar a Região Conservacionista de São Paulo, onde tem oportunidade de desenvolver técnicas conservacionistas para regiões de topografia inclinada. Os trabalhos científicos são divulgados em vários congressos.

Um salto importante em 1958, o ano da primeira Copa do Mundo do Brasil, de Pelé, da euforia nacional dos anos JK, a construção de Brasília, a Bossa Nova conquistando o mercado internacional. O agrônomo muda-se para Pirassununga, onde inicialmente chefia a Escola de Tratoristas, do então Departamento de Engenharia Mecânica da Secretaria da Agricultura.

Ainda em Pirassununga, chefia o Posto Avançado de Piscicultura do Instituto de Pesca, também ligado à Secretaria de Estado da Agricultura. Nesta função, desenvolve várias pesquisas com peixes do rio Mogi-Guaçu. É o primeiro e mais intenso contato, profissionalmente, com o mundo da pesca, paixão de criança que permaneceria por toda a vida.

Junto ao Mogi-Guaçu, o encanto cada vez maior pelas águas e os peixes. Mas Nelson não deixa de lado outra paixão antiga. Ele se torna um grande colecionador de pássaros. Chega a ter cerca de 400 deles, de dezenas de espécies. Tangarás azuis com faixa preta e topete vermelho, saíras do Rio Negro, handais, periquitos, araras, tico-ticos e um raríssimo japu-açu, entre outros, promovendo uma sinfonia permanente de cores e múltiplos sons.

Dois pássaros tinham um certo xodó do colecionador. Eram duas sabiás, uma poca e uma laranjeira, ambas muito raras e muito procuradas. O agrônomo rejeitou grandes ofertas por esses e outros pássaros.

Nesses tempos, outro talento desenvolvido. Era o de taxidermista, a partir de técnicas que conheceu ainda em São Paulo. Foram muitos pássaros e peixes que ele submeteu à técnica. Mantém até hoje um exemplar de peixe raríssimo, o cascudo-espinho (Pterygoplichthys gigas).

Um dia, a libertação. As leis mudaram, a visão sobre os animais também. O agrônomo teve que libertar as suas aves. Muitas delas foram encaminhadas a instituições científicas, assim como a quase totalidade dos indivíduos empalhados. “Não foi muito fácil não ficar sem eles”, confessou, com um olhar de nostalgia feliz, em entrevista concedida ao repórter em 2015.

Em Piracicaba, a liderança na luta pelo rio

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Rio Piracicaba na década de 1990: momento de intensificação da mobilização local e regional. (foto: Adriano Rosa)

Em 1972, o Nelson de Souza Rodrigues foi promovido, por concurso, à carreira de Pesquisador Científico. Três anos depois, o reencontro com Piracicaba e o seu rio, a maior vocação. Em 1975, foi nomeado chefe do Setor de Ecologia do Meio Hídrico, através de convênio entre o Instituto de Pesca da Secretaria de Agricultura e o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA), ligado à Universidade de São Paulo (USP).

Foi neste posto privilegiado, no contato quase diário com o rio, que o pesquisador aprofundou seus estudos, alargou seus conhecimento e alimentou a sua indignação. Entre 1975 e 1985, ano de sua aposentadoria como pesquisador, ele realizou inúmeros estudos sobre o meio hídrico e sua diversidade. Uma das maiores constatações foi a da degradação crescente das águas, com impacto direto no ciclo vital dos peixes que historicamente habitavam o rio Piracicaba.

O primeiro estudo promovido, a pedido do diretor do CENA, Dr.Admar Cervelini,  já era um indicador muito preocupante. Por dois anos, ele colheu amostrar quinzenais, para verificar a possível presença de nitrato no rio e seus afluentes. As amostras estavam relacionadas a quatro tipos de cobertura vegetal, por mata, lavoura, pastagem e cana. A conclusão foi a de que a poluição por nitrato de fato ocorria de modo expressivo, com exceção das amostras feitas junto a matas nativas. O trabalho teve repercussão internacional, com sua divulgação no Coordinated Research Program Meeting – IAEA, em maio de 1978, em Viena, Áustria, e também no I Simpósio Nacional de Ecologia, patrocinado pelo Instituto de Terras e Cartografia do Paraná, em 1978.

Justamente no período em que trabalhou no CENA, Nelson Rodrigues sentiu assim, como toda a cidade, os efeitos do agravamento da poluição. Naquele momento, dois fatos contribuíram para Piracicaba ficar em alerta máximo com relação ao estado e perspectivas para o rio adorado.

Em primeiro lugar foi o início da operação, em 1974, do Sistema Cantareira, concebido pelo governo militar para garantir o abastecimento de metade da Grande São Paulo. A solução encontrada foi construir um conjunto de reservatórios pouco depois das nascentes dos rios Atibaia e Jaguari, os dois principais formadores do rio Piracicaba.

Desde o início houve a mobilização dos piracicabanos, moradores da “última cidade” da bacia, mas conscientes de que a retirada de águas da bacia poderia afetar diretamente o Atibaia e, por extensão, o próprio Piracicaba.  Posteriormente, estudos realizados no próprio CENA confirmaram que as suspeitas tinham razão de ser. O Cantareira foi projetado para retirar até 33 mil litros, ou metros cúbicos, por segundo de água da bacia do Piracicaba para abastecer cerca de metade da Grande São Paulo.

Outro ingrediente que repercutiu diretamente no rio Piracicaba foi o lançamento do Proálcool, em 14 de Novembro de 1975, por meio do decreto n° 76.593  do governo federal. Era a resposta do governo militar à crise mundial do petróleo, aberta em 1973. A ideia era estimular uma tecnologia energética nacional.

A região de Piracicaba, historicamente um território de cultivo de cana, foi particularmente afetada pelas medidas de incentivo à produção do álcool. Ocorre que, naquele momento, a legislação sobre meio ambiente ainda era muito limitada e, além disso, não havia maiores cuidados por parte da indústria sucroalcooleira. O resultado foi a proliferação de descartes de resíduos do processo produtivo, a vinhaça, diretamente e sem tratamento nos corpos hídricos. Com isso, começaram a acontecer frequentes mortandades de peixe no rio Piracicaba. Depois, com avanços na legislação e na tecnologia, e sobretudo a partir dos estudos pioneiros de Jayme Rocha de Almeida na Esalq, o que antes era descartado pelo setor sucroalcooleiro a vinhaça, passou a ser utilizado como fertirrigação nos canaviais. Hoje a atividade é que mais trata esgotos próprios no setor industrial.

Mas, na época, as frequentes mortandades de peixes foram o estopim para a mobilização popular em defesa do rio que dá vida, identidade, à cidade. Com novos estudos, a situação se tornava cada vez mais assustadora.  Das 107 espécies de peixes que o agrônomo catalogou, nesse período no CENA,  33 espécies, um terço, já haviam desaparecido do Piracicaba. Outras 53 se tornaram temporárias ou se tornaram quase extintas e somente 16 poderiam ser consideradas permanentes, enquanto três eram espécies introduzidas.

Com a movimentação alimentada pelo início da operação do Cantareira e pelos impactos do Proálcool, Piracicaba tornou-se gradativamente uma referência nacional e internacional de defesa das águas. Para dar ainda maior credibilidade e lastro a essa mobilização, eram divulgados os estudos como os realizados por Nelson de Souza Rodrigues (como o de despoluição com o uso de aguapés) que, no entanto, não ficou na esfera da pesquisa. Após sua aposentadoria em 1985, passou a se dedicar de corpo e alma à campanha em defesa do rio.

(continua)

*José Pedro Soares Martins é jornalista e escritor, com mais de 70 livros publicados e prêmios de jornalismo; consultor de empresas e ONGs.

Para conhecer o post completo, acompanhe a TAG 100 anos dr. Nelson .

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