Thales Castanho de Andrade, 130 anos (5)

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Exposição na Câmara de Vereadores de Piracicaba comemorou os 130 anos de nascimento do escritor Thales Castanho de Andrade.

Thales e Piracicaba: paixões, mitos e desejos

Valer-se de um aforismo de Nietzsche como epígrafe para um texto que se põe a discutir literatura infantil pode parecer uma iniciativa fora de propósito. Todavia, quando reconhecemos que a literatura desperta nas pessoas os mais recônditos sonhos e as mais veladas paixões, decerto temos de admitir que – em meio ao fogo cruzado das discussões que cercam o debate literário – sempre é bom termos por perto o duro e maciço escudo da razão a nos trazer de volta às trilhas da atividade científica.

Além disso, quando paixão e desejo encontram-se inseridos em um debate crítico, costumeiramente vemos a vaidade, sorrateira, juntar-se a eles – instalando uma crise na qual a razão, se não chamada às pressas, dificilmente consegue intervir. Nesse sentido, pode-se dizer que, envolta em paixões avassaladoras e desejos ardentes, a literatura infantil produzida por Thales Castanho de Andrade não foge à fogueira das vaidades que circunda o sentimento amoroso mais banal.

Cercados de ferozes admiradores – na verdade, leitores e amigos fiéis, inveterados e radicais –, Thales de Andrade e sua obra representam – para aqueles que conhecem seus livros e sua trajetória política e literária – um marco na cultura da cidade de Piracicaba (e, por que não dizer, na cultura do estado de São Paulo). Sem exageros, podemos dizer que qualquer pesquisador que se puser a conhecer e a estudar mais de perto a obra de Thales de Andrade verificará que a recepção de sua obra aponta em especial para a paixão de um seleto grupo de leitores piracicabanos – leitores esses que, já há algumas décadas, vêm tentando resgatar a imagem de Thales escritor a fim de trazê-la de volta ao cenário nacional da literatura infantil.

Ora, em um país frequentemente acusado de descaso em relação à sua memória cultural, a obstinada dedicação de alguns leitores para com a vida e a obra de um escritor/educador como Thales não pode ser de forma alguma rechaçada. Todavia, e como nos lembra Niesztche, se por trás de toda boa ação sempre se esconde muito sangue e muito temor, a paixão desenfreada desse seleto grupo por Thales e por sua obra acaba deixando no ar um cheiro perigoso de bairrismo, rivalidade e mitificação.

Valorizada por Thales em seus principais livros – como em “Saudade” e “Campo e Cidade,” por exemplo –, Piracicaba deve, hoje, retribuir ao autor os louros que esse lhe rendeu em suas estórias. Numa via de mão dupla, a relação Thales/Piracicaba nos leva a uma interessante equação de caráter, como já foi dito, eminentemente bairrista: Piracicaba valoriza Thales, que por sua vez (ao prefigurar no rol dos ilustres escritores infantis do Brasil) pode vir a destacar Piracicaba entre as demais cidades brasileiras.

Da mesma forma, e sob a égide dessa mesma equação, procede a relação de Piracicaba para com os demais escritores de literatura infantil, que, com Thales, dividiram o cenário das letras e o mercado editorial brasileiro no início do século XX. Ou seja, há entre os adoradores de Thales um impulso inevitável para coroá-lo como pioneiro da literatura infantil ou como pioneiro da temática rural dentro dessa vertente literária – fato que sempre se impõe quando se trata de valorizar e destacar a figura de Thales dentre os demais escritores da literatura infantil brasileira.

Quase sempre rivalizando de maneira direta e interminável com a obra de Monteiro Lobato, o orgulho de muitos leitores de Thales – embrenhados numa minuciosa busca cronológica que visa descobrir qual dos dois autores primeiro se aventurou pelas veredas da literatura infantil – não permite que um verdadeiro diálogo entre a obra de Thales e de seus contemporâneos realmente se estabeleça de forma crítica.

Quanto temor e quanto sangue há no fundo de todas as coisas boas. (Nietzsche – “A Genealogia da Moral”)

Nesse sentido, e ao contrário do que inicialmente possa parecer, o que aqui se propõe – ao se tenta situar, aqui, a problemática que envolve o culto a Thales Castanho de Andrade e à sua obra – não objetiva apenas apontar excessos ou desmistificar paixões. Da mesma forma, de maneira alguma se intenta diminuir o valor de Thales enquanto educador ou de sua obra enquanto literatura.

Assim, também não se pretende criticar ou ridicularizar qualquer esforço para se difundir a leitura ou o acesso aos livros desse mestre piracicabano – afinal, como já foi dito, num país acusado de não ter memória nem educação, qualquer tentativa de se incentivar a leitura deve ser sempre bem-vinda.

O que aqui se pretende, na verdade, é mostrar – se possível fora dos limites da paixão – valor e a importância da obra de Thales, dentro de um contexto que toma por base o estabelecimento de um gênero de produção literária destinada às crianças brasileiras. Contudo – e sem contar que por trás dessa intenção possa existir, a “la Niesztche,” qualquer intuito malévolo – pode-se dizer que analisar a obra de Thales intentando desmistificá-la e destituí-la de seu posto celestial é poder debater de forma criteriosa a sua importância dentro do panorama da educação e da literatura infantil brasileira do início do século XX.

Em outras palavras, e ao contrário do que até hoje se veicula equivocadamente na mídia local, Thales não “inventou” a literatura infantil ou infanto-juvenil no Brasil. Do mesmo modo, não é ele o primeiro que se pôs a escrever para esse público. Outros autores – se é que se faz necessária uma genealogia nesse sentido – escreveram, no Brasil, para crianças e jovens, antes de Thales.

A saber, por exemplo, data de 1905 uma das primeiras revistas infantis que temos notícia, a revista “O Tico-Tico”. Em 1910 é a vez de Olavo Bilac, inspirado num romance juvenil francês, escrever “Através do Brasil”. Julia Lopes de Almeida também pode ser elencada no rol dos que antecederam a Thales na literatura brasileira – sim, ainda insipiente – para crianças.

A genialidade de Thales, portanto, não pode erroneamente ser atribuída a um pioneirismo completo nessa seara – uma vez que Thales claramente se inspira nesses poucos antecessores brasileiros e em alguns internacionais (como Edmundo de Amicis, por exemplo). O pioneirismo de Thales, nesse sentido, vem do fato de ele tocar em temas, até aquele momento, praticamente desconhecidos – como a questão da ecologia e do meio ambiente. Sua genialidade está, por assim ser, centrada na ideia de fazer da literatura infantil um instrumento de persuasão, de pedagogia e formação política para crianças e jovens – valendo-se da literatura (bem ou mal), como possibilidade de ensino.

Por fim, Thales amplia a ideia do Brasil como um grande sítio – e faz de “Congonhal”, de seu livro “Saudade”, a inspiração que Lobato pode ter encontrado para pensar o seu Sítio do Pica-Pau Amarelo. Não à toa, em exemplar de “As Reinações de Narizinho”, de 1921, enviado a Thales, Lobato reconhece a influência parcial do piracicabano em sua obra, e escreve a ele: “Ao piracicabano Thales Castanho de Andrade, padrinho de Narizinho”.

Pioneirismos à parte, importa conhecer a obra de Thales para que – queiram os apaixonados ou os estudiosos – possamos situá-la com o devido cuidado na história literária piracicabana, paulista e brasileira.

*Alexandre Bragion é doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp.

[texto publicado, originalmente, no caderno especial produzido pelo jornal “A Tribuna Piracicabana”, em comemoração aos 130 anos de nascimento do escritor piracicabano Thales Castanho de Andrade – considerado o pioneiro da literatura infanto-juvenil brasileira]

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