A todos os caipiras

Há 33 anos, em 28 de agosto de 1987, nascia a primeira edição impressa de “A Província” – semanário que, anos mais tarde, abriria espaço para sua versão digital, este website de mesmo nome. Em homenagem à data, publicamos, a seguir, a apresentação e o editorial que o jornalista Cecílio Elias Netto preparou para o lançamento do novo veículo de comunicação.

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Editorial

A minha sensação pessoal não é a de que estou retornando ao jornalismo em minha terra, essa Piracicaba que, no meu tempo de vida, é o espaço do mundo onde a vida aconteceu em mim. A sensação que me domina — e é mais do que isso, porque consciência e certeza — é a de que estou iniciando tudo. Não é reinício, mas início. E tem que ser assim, não poderia ser de outra maneira. São novas situações, novas realidades, uma nova circunstância. E o “homem é ele mesmo e a sua circunstância”, na descoberta do filósofo. Isso significa, pois, o homem desafiado a renovar-se e a adequar-se a cada nova circunstância. E essa sensação de início me é fortalecida pela presença da juventude a meu lado, de gente nova no jornalismo, de uma garotada que está para construir tudo justamente num momento — esse momento de redemocratização fundamental para a vida brasileira e, portanto, também de Piracicaba — em que tudo está sendo reconstruído.

Vejo-me, pois, com pessoas que estão tomadas pela chama de construir exatamente num momento de reconstrução. Somos o Gustavo, o Zé ABC, o Cerinha, a Marilena Müller, o João Chiarini, o Nelson Campos, o Douglas Mayer, eu — os velhos-de-guerra. Mas cercados da Vera, da Maria Lúcia, da Margô, do Ronaldo, do Alcides, do Newton, do Marcelo, da Regina Mello, da Rô — a moçada que entrou no pedaço e que veio prá ficar. E o Zé Maria Ferreira, que já foi JM Ferreira.

Somos pessoas maduras, sofridas, curtidas e renovadas pela fantástica experiência da dor — privilégio de uma geração — que convivem ao lado da esperança, da explosão, da generosidade e do idealismo de moços que estão começando. Tem que dar certo! “A PROVÍNCIA” nasce do amor, de um profundo amor por esta terra, esta gente, estes tempos novos de ressurreição. Eu, pelo menos, estou ressuscitado.

A todos os caipiras

(aos caipiracicabanos, aos de São Pedro e Águas de São Pedro e Santa Bárbara – quantos santos! – e aos de Rio das Pedras e Charqueada, também aos de Tietê, a “Tieter velha-de-guerra”.)

Meus queridos irmãos.

Por meio destas mal traçadas linhas, espero encontrá-los gozando da mais completa saúde e felicidade, junto aos seus. Estamos tão separados uns dos outros há tanto tempo, que tenho até medo de que tenhamos esquecido de quem somos. Eu sou A PROVÍNCIA, lembram-se ainda de mim ou já me esqueceram? Acho que vocês se esqueceram de que eu sou A PROVÍNCIA, de que somos província, todos nós provincianos. Mas eu compreendo, pois muita coisa aconteceu: o tempo que passou, as correrias da vida, esses sustos e sobressaltos que a gente vai sofrendo diante de tanta agitação, pressa, confusões, mudanças, toda essa violência e competição que acabam deixando a gente meio perdido na vida e no mundo. Isso também aconteceu comigo. As coisas são tão simples, mas nós acabamos complicando tudo, não é verdade?

Eu, A PROVÍNCIA, estava com muita saudade de vocês, da terrinha boa de se viver, dos “causos” que a gente contava, das serenatas e serestas, do murmúrio do rio, dos peixes que a gente pescava, daquela lua bonita que iluminava o sarto e que prateava até a Rua do Porto. Os pescadores, como estão? O Tangará, o Luiz Trovão, eles ainda estão vivos? Quero saber de tudo, reviver tudo. Foi tanta loucura, tanta pressa, tanta correria – que todos nós acabamos nos esquecendo de tudo. E até eu mesmo acabei tendo outros nomes, esquecendo-me de que sou, apenas, A PROVÍNCIA, e de que o meu lugar e a minha alegria só posso encontrá-los na terrinha da província.

E a mamãe como está? E o papai, os irmãos, sobrinhos, primos, cunhados, vizinhos, netos, compadres e comadres, os parentes – estão eles bem? De minha parte, vou indo como Deus quer, apesar de tudo o que o Diabo inventou. Na verdade, não tenho ido, não. Fui sendo levado. Andei com muitos problemas de saúde. O pharmacêutico me disse que era coisa passageira, desde que eu não descuidasse de mim. Mas como cuidar de mim se eu sou A PROVÍNCIA e tudo o que o homem da botica me receitou não encontrei em lugar algum? Para ele, o meu problema a tinha um nome esquisito, “perda de identidade”. E ele me disse que tinha sido burro demais, pois, ao invés de aceitar que eu sou apenas A PROVÍNCIA e que isso é tudo, fiquei inventando que sou metrópole, capital, megalópolis, cosmópolis.

O homem da botica me falou coisas chatas de ouvir: “Você, se não aceitar que é apenas A PROVÍNCIA e não “The New York Times”, será sempre infeliz e terá hemorróidas, prisão de ventre, pressão alta, vazio no peito, angústia e insatisfação, chulé, brotoeja, caspa, urticária, cravo e espinha, varizes, barriga d’água, olho-de-peixe e até câncer – um câncer na alma, o pior de todos”. Foi o que ele me falou. E falou mais, duro e direto: ”Assuma que você é Piracicaba e deixe dessa besteira de querer ser Noviorque, Rio de Janeiro, Paris, ‘Oropa, França e Bahia’. Você é um caipira e isso é bonito. Todo mundo é caipira diante do mundo. Enquanto você não aceitar a sua verdade, será sempre um doente, com todas essas dores de corpo e alma.”

E ele me receitou remédios de curar, de salvar: conversa na calçada, com cadeiras à porte; conversa de botequim; um violão, serenata; o cururu, a caninha-verde, moda de viola; apanhar goiaba ou jaboticaba no pé; andar descalço e pitar fumo de corda; lambari frito e caipirinha com pinga de alambique – essas coisas que vocês conhecem e que e conheço.

Mas quê! Por onde andei, não encontrei nada disso. As ruas estavam violentas, as pessoas ficavam presas dentro de casa, os jardins eram de bandidos, todo mundo tinha medo de todo mundo, até os bons tinham medo dos bons. E me receitaram remédio prá dormir, remédio prá ficar acordado; remédio prá relaxar, remédio prá agitar, prá ligar e desligar. O pharmacêutico receitou gengibirra prá arrotar e me deram coca-cola, um detergente que até desentope pia. E onde eu podia achar as coisas simples que ele me mandou aviar: a água de melissa, os chás de erva doce, de carqueja, de erva cidreira, de maracujá? E ele me aconselhou, para ser feliz, ficar pescando em beira de rio, ouvindo mentira de pescador e contando mentira para pescador. Mas o que encontrei foram temporadas no Guarujá, hotéis de cinco estrelas, o “Gallery” – mentiras muito diferentes de mentiras de pescador, mentiras em que havia interesses e não o sonho.

Agora, meus queridos irmãos, resolvi assumir que sou A PROVÍNCIA, que sou da província, um privilégio e um dom que eu quase perdi. Sou caipira, capiau, interiorano, provinciano – e isso é tudo o que há de bom na vida, pois é a identidade, são as raízes. Caipira, mas com um “som paulêra” prá curtir; usando a Informática, mas permanecendo caipira; sendo atual, mas caipira; mais importante do que “The New York Times”, pois serei apenas e integralmente A PROVÍNCIA.

Sou A PROVINCIA e espero que, retornando às origens, vocês tenham a coragem de ser provincianos. Apenas o provinciano é moderno, pois é o provinciano que tem parâmetros para distinguir o antigo do velho, o novo do novidadeiro, aquilo que acabou e aquiIo que começa. A História é isso: o antigo que permanece, o velho que acaba. O que é verdadeiro não envelhece jamais: homens, cidades, coisas. Pois viver é conviver. Ê preciso coragem de viver, sabedoria de conviver. E conviver é harmonizar passado, presente, futuro – o antigo, o atuai, o novo, Província é isso. A PROVÍNCIA será isso.

Desejando-lhes os melhores votos de saúde e felicidade junto aos seus, subscrevo-me atenciosamente

A PROVÍNCIA

28/08/1987 DC (Depois da Confusão)

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