Quando a preguiça salva

PreguiçaLonge de mim, muito longe mesmo, referir-me à preguiça como um dos sete pecados capitais, pois seria esforço hercúleo para tão poucas linhas de uma croniqueta. Como pecado, a preguiça tem um histórico dramático, também conhecido como acídia, da qual faz parte a melancolia enquanto doença, além de filosofações sem fim, ainda que interessantíssimas. A preguiça pode – por que não? – ter algo bom, além de prazeroso, mesmo sabendo-se que há grandes e imensos pecados prazerosíssimos.

Há coisas que, tendo-nos causado horror, acabam se tornando apenas enfadonhas. Para mim, estar em fila, qualquer que seja, me é profundamente enfadonho, algo que admito estar muito próximo da neurose. Atribuo esse meu pavor por filas aos meus tempos de aluno salesiano, quando éramos obrigados a fazer fila para tudo: para entrar na sala de aula, para ficar ouvindo sermão inicial da manhã, para comprar lanche, para ir ao confessionário, já que a confissão semanal era absurdamente obrigatória. A propósito de confissão, lembro-me que, na fila do confessionário, eu e um que outro colega perguntávamos que pecado iríamos contar, já que nem sequer sabíamos como se pecava de verdade. Acabávamos, para não decepcionarmos os padres, inventando pecados que deveriam ser ridículos.

A partir das filas de infância e adolescência, não mais as suportei. Onde quer que houvesse fila, eu me retirava. Se no cinema ou no teatro, a fila era grande, eu desistia de assistir ao filme ou à peça. Em supermercado, antes de qualquer compra, vejo, primeiro, a fila do caixa: se estiver grande, vou-me embora sem nada comprar. Outra coisa: está virando conversa mole essa história de caixas especiais para idosos, gestantes, deficientes, pois, pelo visto, somos a maioria do povo, tais e tão grandes as filas que se formam no que deveria ser apenas especial. O mundo envelheceu, está com mais gente doente do que saudável e o mulherio engravida ou finge estar com barriga grande, sei lá.

O horror a filas acabou, com o tempo, por se transformar em tédio, enfado e preguiça. E foi essa preguiça que me salvou nos primeiros tempos do golpe militar, quando a ditadura não era tão rude mas já exercia seus poderes de truculência. Foi no DEOPS, para onde fui chamado a depor como subversivo, perigoso, comunista miserável que desejava a desgraça da nação, um jornalistazinha de um jornalzinho do interior que os milicos processaram pela Lei de Segurança Nacional. Eu era uma ameaça nacional e não sabia.

Pois bem. Fora, no DEOPS (que era apenas DOPS antes) a minha primeira experiência com a tortura psicológica. Não me tocaram, mas falavam em estupro, numa sala escura, apenas com uma luz sob a qual me colocaram de pé. Por longas 12 horas, eles me interrogaram querendo saber coisas que eu jamais imaginara existissem, gravando cada palavra minha, fazendo ameaças. Eu, fumante inveterado, estava proibido de fumar, enquanto, a meu lado, sem que eu lhes visse o rosto, eles fumavam e bebiam café, soprando-me a fumaça no rosto. Pensei fosse morrer de cansaço, enquanto eles se revezavam em seu sadismo.

Finalmente, mandaram-me embora, obrigando-me a entrar numa fila onde vi pessoas alquebradas, amargas, todas acreditando que estavam sendo liberadas para apanhar de volta seus documentos. Minha angústia aumentou, a fila me fazia suar ainda mais frio. Então, percebi que, ao lado, havia uma porta pela qual pessoas entravam e saíam, dando para a calçada. E a fila não andava. A preguiça bateu-me forte e me considerei, então, um idiota: ora, se aquela porta dava para a rua, se pessoas entravam e saíam através dela, por que eu não faria o mesmo? E com a maior calma e tranqüilidade do mundo, saí da fila, fui à porta, abri, saí na calçada, dirigi-me à outra entrada quando, então, vi os meus amigos, deputados Domingos Aldrovandi e Salgot Castillon, desesperados, querendo saber de mim. Eles sabiam e eu não, que naquela fila estavam os subversivos que os milicos estavam mandando para a prisão da Ilha Grande, muitos dos quais desapareceram por lá mesmo.

Aldrovandi e Salgot me empurraram para dentro do carro, já estavam com meus documentos nas mãos e desapareceram comigo por alguma horas. Acabei entendendo que graças aos padres salesianos – responsáveis por meu horror a filas – escapei da prisão da Ilha Grande. E entendi que a preguiça pode ser um pecado doce e salvador. Pelo menos, me salvou, daquela vez, da sanha dos milicos, esses mesmos que muita gente anda defendendo por aí, atacando quem arriscou a vida para reagir, chamando-os de terroristas, esquecidos que Nelson Mandela, Menachem Béguin foram alguns dos perigosos terroristas que receberam o Prêmio Nobel da Paz, esse mesmo prêmio que, aliás, Barack Obama está próximo de desmoralizar. Bom dia.

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