(Com)paixão no reino de Afrodite

Afrodite surge estonteante de uma concha, como símbolo de um precioso tesouro. A deusa áurea era, na antiga Grécia, a grande defensora das artes, da poesia e da música. Mãe do igualmente divino Eros, divide com ele a qualidade do daimon, o elo, o ligar-se ao outro. Nesse sentido sua natureza prima pela ligação pessoal com o companheiro, com o amante, com aquele pelo qual ela dedica toda uma existência.

Sua tarefa é relacionar-se: amigável, social, física, espiritual ou amorosamente: ela quer que todo relacionamento tenha coração. Ao mesmo tempo, é uma sensualista completamente ousada e sem pudor. Ama as coisas que despertam todos os sentidos. Mais do que qualquer outra deusa, Afrodite possui uma visão acumulada através do sofrimento, da paciência e da abstenção de revidar. Ela foi rejeitada, abandonada, aviltada; seu coração despedaçou-se tantas vezes que atingiu grandes proporções na capacidade de amar. Por isso ela é deusa não apenas da paixão, mas também da compaixão.

Quando está profundamente envolvida, ela se mostra uma excepcional confidente, uma amiga espiritual além de sexual. Atrai os homens não apenas pela sua beleza física, mas também pela sua sabedoria feminina espontânea no que tange aos assuntos do coração. Afrodite entende as pessoas e, sobretudo, os homens.

Infelizmente, o domínio patriarcal forçou-a a submissão e ao silêncio, e nenhuma deusa foi tão abusada quanto ela. Desde a época em que os homens tomaram das mulheres o controle, desconfiam do liberal espírito poligâmico de Afrodite, e fazem o máximo possível para confiná-la e restringi-la, tornando-a uma concubina, uma prostituta, cortesã ou amante. Mas nunca deixaram de ansiar por seus dons estáticos, quase místicos, de amor e prazer, e assim nunca conseguiram bani-la inteiramente. Da mesma forma que não podem viver com ela, também não podem viver sem ela.

É sabido que os gregos, assim como os romanos eram tolerantes a todo tipo de comportamento sexual. Os próprios deuses eram promíscuos, os homens da antiguidade preservavam a fidelidade de suas esposas mas eram bastante abertos em relação aos seus duplos padrões diante dos valores de Hera e de Afrodite. Por mais liberais que possamos nos pensar hoje em dia, sabemos que a duplicidade de valores não mudou. Enfrentar as chagas dilacerantes da deusa do amor é tarefa das mais difíceis. Remonta a desvalorização do feminino durante a Idade Média quando, na tentativa de suprimir a magnífica cultura venusiana, a Igreja proibiu que os homens cultuassem uma mulher de carne e osso, como haviam ensinado os trovadores. Em vez de uma mulher real induziram uma mulher ideal: a Virgem Maria.

Assim, mantidas cativas de um ideal e de um puritanismo correndo tão fundo, muitas mulheres continuam incapazes de apreciar a plena sensualidade do seu corpo e de serem amadas por isso.

A mulher-Afrodite, quando está presente num relacionamento amoroso dissipa todas as defesas, todas as couraças. Possivelmente venham a sentir-se profundamente tristes, com medo e irritadas por sentirem-se tão expostas. O que sucede é uma tentativa de fechar-se novamente, de voltar aos fuxicos da vida, aos controles das coisas…Reações diante do afloramento de sentimentos há muito enterrados. Se, por outro lado, ela tiver ouvidos de ouvir esse chamamento vindo de um feminino estrangulado, conseguirá perceber a tolerância e a paciência de que é capaz. A deusa do amor quer o coração – símbolo de tudo o que é autentico e verdadeiro em nossas menos defendidas profundezas.

*Elaine de Lemos é psicanalista.

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