Mulher Atena

Podemos pensar uma deusa como sendo a descrição psicológica de um tipo complexo de personalidade feminina que reconhecemos intuitivamente em nós, nas mulheres à nossa volta, e também nas imagens e ícones que estão em toda parte em nossa cultura. A jovem executiva, inteligente e bem vestida, tão presente em nossas grandes cidades, é a personificação viva de um tipo de deusa que chamamos mulher-Atena, em homenagem à deusa grega padroeira da antiga cidade de Atenas.

A primeira coisa que notamos no mito do nascimento de Atena é que ela nasce da cabeça de Zeus; a segunda, é que surge inteiramente armada, pronta para agir. Ela não é nenhuma estudiosa reclusa numa torre de marfim; pelo contrário, quer estar bem no âmago da batalha – seja política, social ou intelectual.

Para quem a conhece, é evidente que ela quer ser bem sucedida no mundo; afinal, seu espírito de luta preparou-a para vencer sempre que possível. Portanto, ela deixará muitas vezes o mundo maternal de Deméter em banho -maria por tanto tempo quanto julgar seguro. O mundo conjugal de Hera só irá atraí-la na medida em que facilitar, promover ou fundamentar suas operações na vida.

O casamento de uma mulher-Atena será frequentemente tempestuoso enquanto ela não resolver o que realmente deseja da vida e não parar de descarregar suas incertezas e vulnerabilidades secretas (a donzela oculta sob armadura) em cima do companheiro.

Atena foi ferida ao máximo. Foi profunda e frustrantemente separada das raízes de sua feminilidade, presa num círculo vicioso, cuja realidade sua mente nega. Embora possa encontrar um certo apoio no mundo paternal de sua carreira ou tornar-se uma intelectual enfurecida, a mulher-Atena ferida acaba constatando que é incapaz de atuar plenamente em qualquer um dos dois planos, de tal forma suas perturbações lhe consomem as energias. Na realidade, ela irá lançar o excesso de sua raiva superabundante contra a mãe, sobre os homens e o mundo paternal em geral – retirando-se talvez, cheia de amargura para uma vida de pobreza, ou ingressar num grupo feminista radical, ou juntando-se a uma comunidade que prontamente a incentive a comprazer-se em sua raiva.

Infelizmente, por mais que a vivência em grupo ou o amor lésbico possa proporcionar-lhe um pouco da meiguice e acalento maternal de que tanto necessita, a verdadeira chaga, aquela dor no cerne de seu complexo raramente será tocada. Pelo contrário, será absorvida na identidade política do grupo, o que permitirá a ela odiar os homens como se esses fossem predadores.

O companheirismo do grupo, que pode ser uma enorme fonte de criatividade para a mulher-Atena em circunstâncias mais felizes, transforma-se numa maneira politicamente legitimada de esconder sua vulnerabilidade e de enterrá-la cada vez mais fundo.

A imagem grega de Atena como uma donzela de espada e armadura sugere enorme tensão entre uma resistente personalidade “masculina” externa e uma interioridade feminina sensível e extremamente vulnerável, embora atrofiada ou virginal por permanecer intocada. Até mesmo as mais bem sucedidas e carismáticas mulheres-Atena revelarão em terapia o quanto na verdade se sentem inseguras e ansiosas por dentro, a despeito de tudo o que realizam externamente e de todo o reconhecimento que recebem.

Eis aqui o paradoxo que nos leva ao cerne da chaga de Atena: quanto mais ela encobre a donzela vulnerável, mais impetuosa se torna sua armadura protetora e mais inconsciente estará dela. O âmago da chaga de Atena é a chaga de seu âmago, e é justamente sobre o coração, sobre o peitoral, que muitas imagens gregas colocam a cabeça de Medusa.

Em linguagem psicológica, a camada mais grossa da estrutura defensiva será aquela mais próxima do cerne do complexo. Pois, como um animal machucado, a mulher-Atena profundamente ferida irá afugentar com selvageria todos aqueles que mais poderiam ajudá-la, pois não tem como desarmar suas defesas, tirar sua armadura e expor a essência nua e infinitamente sensível de sua feminilidade.

Quando sua armadura já se enrijeceu e sua fúria paira à flor da pele, como armadilha pronta a fechar suas garras sobre quem se aventurar perto demais, a mulher-Atena profundamente ferida se torna incapaz de ver que, na realidade, a meiguice e a vulnerabilidade seriam o portal de entrada para os aspectos perdidos de sua feminilidade, o ponto de encontro com as outras deusas com as quais perdeu o contato.

*Elaine de Lemos é psicanalista

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