Genialidade movida a paixão – Entrevista com Carlos ABC

Pensando bem, no currículo de Carlos ABC só estava faltando mesmo a encenação da Paixão de Cristo, que acontece durante a Semana Santa no Engenho Central, para marcar de vez a sua paixão por Piracicaba. Nascido aqui há 48 anos, Carlos Alberto Bueno de Camargo, ator, diretor, figurinista, cenógrafo e tudo o que mais se referir a teatro, se define como “um bicho do mato, um caipiracicabano legítimo”. Ele tentou, durante um tempo, nos anos 80, viver da sua profissão em São Paulo. Até conseguiu, pois trabalho não faltou. O que faltou, segundo ele contou em entrevista para A PROVÍNCIA, foi o convívio na cidade. “Eu sou daqui, acho que só sei ser feliz aqui”, garante. A entrevista foi concedida antes de sua estréia como diretor de Paixão de Cristo, ficando registrada para os arquivos de A PROVINCIA.COM.

A PROVÍNCIA – Como foi sua expectativa para a Paixão de Cristo? ?

Carlos ABC – Estou numa ansiedade enorme porque é uma grande responsabilidade. O espetáculo já tem uma história de 17 anos aqui em Piracicaba. Na realidade eu acompanho desde a primeira encenação, que foi pequena, ainda na ESALQ. Eu estava trabalhando na Ação Cultural na época e durante os três primeiros anos fiz figuração. Depois fui o Herodes e também João Batista.

Como aconteceu o convite para você dirigir o espetáculo?

Na verdade é a quarta vez que me convidam. Eu indiquei para o Grupo Guarantã o João Prata, na época em que Jefferson Goulart era coordenador da Ação Cultural.

Qual o seu planejamento para o trabalho?

Olha, eu quero fazer tudo de forma a não ter mais tempo para nada. Desde quando aceitei ser o diretor da Paixão de Cristo, já me conscientizei da responsabilidade, comecei a pensar no espetáculo e não parei.

E em que você pensou em termos de novidade?

Tenho mil idéias na cabeça, mas na verdade elas terão de ser testadas durante os ensaios para ver se acontecem. Mas já posso adiantar que o espetáculo não pode ter duras horas e meia de duração porque senão a atenção do público se dispersa.

E o texto?

Peguei 16 textos de Paixão de Cristo para ler, de vários estilos, para fazer o texto final. Tem “O Mártir do Calvário”, o que é encenado em Nova Jerusalém, em Pernambuco, e vários outros. Na verdade cada um acaba colocando as lendas do lugar, o de Nova Jerusalém parece um pouco com literatura de cordel. Eu fiz um texto próprio, nosso, e para isso voltei lá nos Evangelhos para ver o que há de real e de lenda.

Você visualizou como queria a encenação?

Já me perguntaram se a minha Paixão de Cristo será como a de João Prata ou a de Dagoberto Feliz, que fez no ano passado. Respondi que vai ter a cara de Carlos ABC. Eu sempre tive muitas idéias pois participo desde o começo, agora vou testar.

E como ficou sua relação com João Prata, que era o diretor desde o começo?

Ele é meu amigo e preservamos a amizade. Tenho certeza de que ele prefere ver a mim tocando esse trabalho no seu lugar. É claro que ficou algum ressentimento, pois é duro você ver algo que gerou não ficar mais com você. Dá ciúme, mas também não posso responder muito por ele.

E o que você achou do imbróglio todo?

É difícil falar alguma coisa agora que estou envolvido. De qualquer modo não consegui entender muito bem o que causou a substituição. Com o João Prata o espetáculo funcionava muito, era grandioso.

Aquela polêmica toda foi prejudicial?

Acho que existe um público que precisamos reconquistar, precisamos começar de novo.

E dá tempo de você trabalhar no Carnaval?

Eu arrumo tempo. Carnaval também é uma paixão, desde o tempo em que meu pai (o jornalista José ABC) participava, ainda na época em que saíam os cordões na rua Governador. Depois passamos a sair pelo Palmeiras, clube que a gente freqüentava, e fundamos a Portela.

Mas o que acontece com o Carnaval da cidade, que fica sempre no clima morre-não-morre?

Acho que o Carnaval daqui precisa ter uma cara mais definida, fica nessa coisa de copiar escola de samba do Rio sem ter estrutura. Mas eu adoro escola de samba e nunca deixo de participar.

E qual é sua escola do coração?

Na verdade estou em todas, eu torço pelo Carnaval de Piracicaba. Tem ano que faço os carros da Caxangá, desfilo na Zoom Zoom…

Você passou um tempo em São Paulo. Por que decidiu voltar?

Porque eu sou um bicho do mato, um caipiracicabano legítimo. Fiquei cinco anos em São Paulo, nos anos 80, trabalhei bastante, me dei bem lá, fazia espetáculos em escolas de manhã e de tarde e ainda atuava em casas noturnas. Mas teve uma hora que pensei: o que estou fazendo aqui? Eu nunca me desapeguei da cidade, minha casa em São Paulo parecia um consulado de Piracicaba. E tinha coisas como eu ficar feliz quando via um carro com placa de Piracicaba. Meus amigos diziam que não entendiam tamanha paixão. Então eu decidi entender e voltei.

Você também chegou a morar no exterior?

Fiquei um ano na Itália. Chorava de saudade todo dia, mas foi uma experiência válida.

E como é viver de teatro em Piracicaba?

As pessoas sempre me dizem que é loucura. Eu respondo que é loucura mesmo, mas o que eu posso fazer se sou daqui, se minhas raízes, minha origem, minha família, tudo está aqui? É bom participar de algum trabalho em São Paulo, por exemplo, mas o melhor é voltar.

O que você acha da atual movimentação teatral na cidade?

Hoje estou achando ótima porque os artistas procuram se informar mais, vão mais ao teatro, encaram o trabalho profissionalmente, ocupam os espaços que a cidade oferece.

E os espaços também aumentaram…

Exato. O Teatro Municipal ficou em reforma, mas existem outros, o Sesc, o Sesi, o teatro da Unimep, sem contar com o Engenho que vem sendo bem usado.

Você enfrentou alguma resistência familiar quando decidiu viver de teatro?

Pensei que minha família fosse resistir mais. Mas na verdade eu tive a sorte de ter um pai que além de ter uma cabeça aberta sempre foi jornalista e sabe o que é uma profissão instável. E tenho orgulho de ter sido a primeira pessoa na cidade a ter registro profissional em teatro, já que meu pai foi o primeiro a ter como jornalista.

Você nunca pensou em ser famoso em nível nacional, fazer televisão?

Eu fiz televisão quando estava em São Paulo, participei de minisséries que a Globo gravou na época em São Paulo. Eu fazia, mas na verdade não me dava tanto prazer artístico. Fiz também alguns comerciais como do cigarro Columbia Ultra Lights e do chiclete Addams. Mas nunca me adaptei muito ao clima competitivo, acho que sempre fui muito caipira para isso.

E esse seu lado caipira assumido também se manifesta no palco?

Totalmente. Um dos espetáculos que me deu mais orgulho foi “Lugar onde o peixe pára”, sobre a história da cidade. Agora estou montando com o grupo Traga Tralha a peça “O Filho das Águas”, que vai ser centrada na figura do Elias dos Bonecos, e uma figura lendária como o Nhô Liça vai ser uma espécie de anjo. Quero estrear ainda em fevereiro e pedi o espaço da Irmandade do Divino para ficar ainda mais com a cara da cidade.

Fotos: Vinicius Tricanico.

*Ronaldo Victória é redator do Jornal de Piracicaba. Esta entrevista é de sua autoria e foi publicada quando era editor de A Província online. Está sendo republicada para ser arquivada no sistema de A Província.com.

 

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