O poder da fantasia de Clemência

Aos 70 anos e em plena atividade, a artista plástica piracicabana Clemência Pizzigatti destaca uma de suas maiores vantagens: “Eu tenho o privilégio de ter um mundo de fantasia”. Nada melhor num momento em que o mundo anda tão conturbado. Mas Clemência não fecha os olhos para nada que a envolve. Ao contrário. Com a mente sempre em ebulição, ela prepara um novo mural, 27 anos após idealizar o que enfeita o Mirante. O novo trabalho, feito com pedras coloridas, estará à frente da sede da Coplacana, na avenida Luciano Guidottti. Em sua casa na Nova Piracicaba tudo respira a arte. Há peças antigas confeccionadas pelo pai, marceneiro, ou criadas pela mãe, “que tinha mãos de fada”, como diz. Nesta entrevista exclusiva para A PROVÍNCIA , Clemência faz um balanço de sua vida, lembra que foi uma das primeiras mulheres a sair de Piracicaba para estudar e até a usar calça comprida. Feminista? “Eu estava tão preocupada em ser eu mesma que não pensei em rótulos”, diz. A artista só pediu um intervalo no papo para acompanhar mais um capítulo de novela que confessa adorar. Coisa de quem sabe o poder da fantasia.

A PROVÍNCIA – Como é esse novo mural?

Clemência Pizzigatti – É um trabalho que retrata cenas agrícolas e que venho planejando, junto com meus assistentes, há um ano. Ficará à frente da sede da Cooperativa dos Plantadores de Cana, na avenida Luciano Guidotti. Tem 50 metros quadrados e é o segundo grande que faço. O primeiro, que tem 120 metros quadrados, fica no Mirante.

– Qual é o prazer de fazer um trabalho grande assim?

– Mosaico é um trabalho milenar. O bonito da história do mosaico é como, estudando a sua evolução, a gente entende a própria história do homem, desde os assírios e babilônios.

– Fazer um mosaico é como montar um quebra-cabeça?

– Pode ser, mas ele tem regras, você não pode perder o contorno do desenho. E o cuidado do artista deve ser não só com a cor, mas com o movimento rítmico.

– É o que a senhora mais gosta de fazer em arte?

– Olha, como leciono arte há muito tempo, me empolgo com todo tipo de arte. Com 70 anos, que acabei de fazer, acho que ainda não ensinei tudo o que podia. Como artista, fui uma privilegiada, porque meu mundo é a fantasia.

– E num mundo como o de hoje, isso vira uma grande vantagem?

– Mas o verdadeiro artista é também um visionário. Eu exercito a fantasia em tudo o que faço, mas nunca perco o homem de vista.

– Quando a senhora começou a se interessar por arte?

– Nasci num meio artístico, meu pai era marceneiro e minha mãe era aquela que se dizia ter mãos de fada. Também tinha um tio escultor. Com 12 para 13 anos fiz meu primeiro trabalho artístico, que foi ampliar um desenho para a bordadeira.

– E teve uma formação acadêmica…

– Eu me formei professora de arte em 1964 pela FAAP. Em São Paulo, lecionei nos famosos Colégios Vocacionais do Brooklin. Voltei para Piracicaba em 1966.

– Qual é o maior prazer em ensinar?

– Já são 42 anos que ensino e ainda não perdi o prazer de transmitir o que conheço em sala de aula. Da criança aos alunos de faculdade, nunca parei. E também dou aulas para pessoas da terceira idade, o que também é um aprendizado.

– O que é preciso para dar aulas?

– A arte em si pode informar culturalmente uma pessoa. Para ensinar arte não precisa receita. Você retira a arte que a pessoa tem dentro dela. É a sensibilidade de cada um, que muitas vezes está bloqueada pela crítica. Acho que você não ensina, a pessoa vai se descobrindo a si mesma.

– Qual é a melhor definição de arte?

– Para mim é do arquiteto Lúcio Costa: “a arte está no que transcende”. O artista não precisa de diploma, ele é aclamado pelo que faz. Eu te dou um diploma de artista, e o que você faz com ele?

– Outra paixão da senhora são as viagens, não é?

– Exatamente. Acho que é preciso ver ao vivo o que você estudou. Tive outro privilégio que é juntar dinheiro para viajar e já fui a todos os continentes. Em 1990, percorri de carro 5800 quilômetros da Europa. Também passei de carro por toda a Europa Oriental, incluindo República Tcheca, Hungria, Polônia. Também já fui para Egito e Jerusalém em plena Semana Santa, ampliando depois para Turquia e Grécia. A última foi para o Japão.

– E nessas viagens deu para cultivar sua paixão por São Francisco de Assis?

– Fiz questão de ir para Assis, na região italiana da Úmbria, só para ver os lugares que ele percorreu. Fui às capelinhas, vi o Monte Alverne, que ainda é um bosque preservado, os cantinhos em que ele ficava, que ainda estão úmidos.

– E mesmo tendo percorrido o mundo quase todo, a paixão por Piracicaba continua?

– Sempre, e apesar de tudo. A cidade deveria valorizar mais o seu rio, que é tão grande e a gente trata tão mal. Para mim, o rio Piracicaba só é batido em beleza pelo Danúbio. Acho que nós não valorizamos o que temos aqui, as pessoas não reparam mais, elas se esquecem. Tem gente que nunca viu, nunca prestou atenção naquele painel do Mirante, apesar de eu ter feito há tanto tempo.

– Mas quem maltrata o rio são as autoridades ou a população?

– O povo mesmo. Se você descer por essa avenida que tem aqui perto de casa, a Cruzeiro do Sul, você vai ver como as pessoas jogam lixo no rio.

– A senhora já foi discriminada por ser uma mulher independente?

– Sempre fui independente e nunca me preocupei com as opiniões alheias. Olho para a minha vida e vejo que nunca tive o trivial, nem mesmo na alimentação. Até a minha rotina tem um ritmo diferente do normal. Um grande amigo e que me faz muita falta, o Zé Maria Ferreira, dizia que eu sempre surpreendia.

– Desde quando a senhora surpreende?

– Desde a infância. Quando era menina e Filha de Maria, as freiras preparavam as meninas para trabalhos artísticos e eu era a única que queria fazer cenários.

– Foi difícil ser pioneira naquela época?

– Acho que isso sempre esteve em mim. Fui uma das primeiras mulheres a sair de Piracicaba para estudar fora. Também fui uma das primeiras a colocar calça comprida. Quando estava em São Paulo, fazia um mural na sede do Palmeiras, na rua Turiassu, e precisei vistoriar a obra. Então coloquei uma calça, mas naquele tempo não havia a peça para mulher, era uma calça de homem. Também cortei o cabelo curtinho e tinha gente que parava na rua para me ver.

– Era uma feminista?

– Eu não me definiria. Aliás, sempre estive preocupada demais em ser eu mesma para me preocupar com rótulos. E nunca me preocupei com o que pensaram de mim. Quem carrega esse nome, Clemência, no mínimo tem de ser benevolente com as fraquezas alheias.

– A senhora se interessava por política?

– Fui militante socialista e sempre atuei nos movimentos estudantis. Meus trabalhos também não fogem desse lado social.

– Como vê esses escândalos políticos da atualidade?

– Com muita tristeza. A decepção é grande, apesar de nada ser muita novidade, no fundo a gente sempre soube. Mas o que me irrita é gente oportunista querendo posar de santo em meio à crise. E tudo isso continua e a situação do trabalhador fica cada vez pior. O pobre que ganha salário mínimo é mais barato para o patrão do que era o escravo para o senhor. Estamos abaixo do nível de escravidão.

– Com tudo isso, a arte seria um refúgio?

– Não use a arte para parar de pensar em nada. Arte é vivência, é o que emociona. É como disse Fernando Pessoa: “a vida tem graça porque há arte”.

– E o que a senhora ainda espera da vida?

– Acabei de fazer 70 anos e considero outro privilégio continuar com tanta atividade com essa idade. Na minha oração peço para continuar o meu caminho e cumprir o meu dever na Terra

*Ronaldo Victoria é redator do Jornal de Piracicaba e esta entrevista republicada é de sua autoria quando e como editor de A PROVINCIA Online.

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