Rio de jaús e da famosa pesca de “bate-bunda”

O Piracicaba foi um dos rios mais piscosos de São Paulo. O nome do rio fala tudo: onde o peixe pára. Em 1900, pescar era arte, sobrevivência e lazer. Francisco de Assis Iglésias, pescador por vocação, “barriga verde”, registrou o que havia àquela época. O mais procurado dos peixes, “peixe de luxo”, era o dourado. Mas havia piracanjuba, lambaris, rabo vermelho e tambiú, peixes “finos”. Peixe de pobre era corimbatá, peixe do rio baixo, que aparecia em cardumes, quase à flor d´água. Dos “peixes de couro”, os mais gostosos eram os mandis, especialmente o mandi-amarelo, o mandiúva. Eram apreciados, também, o mandi e o jaú.

Para pescar no Salto, havia vara para mandi e dourado. Mas com proibições, conforme a época. Então, pescava-se muito com varas pequenas, ao mesmo tempo em que, para enganar a fiscalização, pescadores mais audaciosos amarravam a ponta da linha na perna, à altura do tornozelo, deixando, na outra ponta, o anzol correr pelas pedras. Na piracema, os peixes como que voavam para subir as pedras do Salto. E os corimbatás sempre foram os mais audazes.

PESCA DE “BATE BUNDA”

Abaixo do Salto, pescava-se de sondá, de espinhel, vara, tarrafa , lanço e promombó, ou bate-bunda. No final do Século XX, quase ninguém acreditou que houvesse a pesca de “bate-bunda”. Mas existia. E o narrador conta que, primeiro, era preciso preparar a canoa, “do tipo caboclo, feita do fuste de uma árvore grande. Na borda esquerda, estendia-se um algodãozinho – pano de tecido tosco de algodão – em todo o comprimento da canoa, preso por fueiros, como uma vela de navegar.”

Daí, a ação, que acontecia apenas em noite sem lua: os homens, um na proa e outro na popa, conduzem a canoa à beira-rio, sempre em silêncio. No momento exato, dava-se um sinal de mãos e sentavam-se rapidamente, batendo as bundas nos assentos da canoa. Assustados, os peixes – geralmente lambaris — saltavam em direção ao largo do rio, batiam no pano de algodãozinho e tombavam no barco.

Lambari pescava-se com vara curta, com pedacinhos de miolo de pão e uma lata de angu, fazendo-se pelotinhas como isca. Mas o dourado exigia todo um ritual, de solenidade. Pescadores profissionais diziam ser preciso “ter ciência” para pescar dourado. Pescava-se, no Salto, com tarrafa, vara e, no rio, com rede, vara de espera, fincada no barranco, pindacuema e espinhel, um cordel forte que se amarrava, uma das pontas, à beira do barranco e outra, esticando-se para o meio do rio. De três em três metros, colocavam-se anzóis com as iscas. Depois, era ficar esperando e, a cada três horas, voltar para examinar o espinhel.

DOURADO, PRATO REFINADO

O dourado tornou-se um dos pratos tradicionais e mais refinados da cozinha piracicabana. Pescador emérito de dourado era o Afonso Pecorari, toda a rua do Porto sabia disso. No armazém, tinha tudo que ele próprio fazia para vender: varas, anzóis, redes, além das cinco canoas que alugava para pescadores amadores, junto com o “balaio”, uma cesta de mantimentos para passar uma semana ou alguns dias nos ranchos à beira rio. Até os pintores comiam dos lanches de Afonso Pecorari. Joaquim Dutra, o Nhô Quim Dutra, era um deles. E os pescadores e as velhinhas da rua do Porto, as costureiras, podiam ver Nhô Quim Dutra pintando no balcão do armazém do Afonso – as telas pequenas, retratando o rio – muitas vezes em troca de um lanche ou de uma boa talagada de pinga.

Não se pescava sem levar-se o “pavão” – como se denominava o garrafão de pinga – junto com linhas e anzóis. Virca Pecorari Pizzigatti, a filha — que os ribeirinhos conheceram como “a costureira dos pobres” — descreveu sua lembrança de Afonso Pescador: “Ele saía com a canoa rodando bem lentamente, com uma mão guiando a canoa no remanso e a outra, tenteando a vara que, por sinal, a dele era a mais caprichosamente confeccionada, anzol afiado. A curva sempre foi um ponto de sorte para pescar dourados. Mamãe ficava seguindo papai de pé na porta, binóculos nos olhos, dizendo: ´hoje, não vamos comer peixe.´ As crianças, ficávamos torcendo – ´a senhora vai ver como pula um bonitão!´ — e, de repente, saltava mesmo. É muito bonita a pesca de rodada, a canoa vai lentamente sem fazer ruído, até que o dourado pega a isca, então com a puxada que o pescador dá salta fora d´água, a gente vê o tamanho dele e, como isso acontece com o sol quente, é maravilhoso, aquele peixe dourado brilhando com os raios de sol. O pescador vai tenteando o peixe dentro d´água até cansá-lo, depois recolhe-o na canoa. Papai chegava orgulhoso com o dourado, ele mesmo limpava e preparava. Era tão bom. Só quem viu e comeu sabe.”

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