Nos tempos da pandemia

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(imagem de Sumanley xulx / Pixabay )

A reclusão não me importa, já o disse antes, especialmente com silêncio ao redor; o que incomoda pra caramba é o vírus. Mas façamos ressalvas, quarentena por quarentena, necessário distinguirmos onde, em qual espaço e com quem. Sim, porque o tamanho do lugar importa, o conforto ou desconforto contam, a companhia ou a solidão podem igualmente pesar, talvez ser aliadas. Possibilidade prática de se recolher é também essencial. Precisamos todos nós de víveres, da subsistência básica, de material de higiene. Até alguma distração, para quem pode tê-la, ajuda e como!

Esse vírus, sujeitozinho mal adaptado a seu hospedeiro humano, é um encardido, ardiloso, deixa-nos nos braços de contínuos serviços domésticos no frigir, às vezes literalmente, dos ovos. Limpezas e mais limpezas, o tal de cozinhar, coisa que odeio. Jamais chegada a essa atividade, gosto de comer o que os outros preparam. Gostava.

Há outras façanhas necessárias, sem graças, que fazemos todos diariamente e só aumentam, acentuam e estabelecem, talvez até o final da vida, o TOC. Quem de nós não o tinha, agora, se sobreviver, terá.

Sair? não queria eu ter de colocar o focinho na rua ou no elevador, mas preciso sair com o cãozinho duas vezes por dia; moro em ap e ele não urina aqui dentro.  Procedo assim: uso máscara, pois mesmo as de tecido, que podem não ser tão eficazes contra as gotículas de saliva, lembram-nos que não podemos tocar a face e dão-nos um ar estranho de personagens de ficção científica ou de terror, de modo que um eventual transeunte nem se aproxima de nós. Aqui devo dizer que eu, que sou afável com vizinhos e com estranhos na rua, tornei-me igual a gato alongado. Se alguém me olha a dez, quinze metros de distância, já corro! Sebo nas canelas. Tenho me forçado a, ao menos, acenar rapidamente de longe para conhecidos, para ser mais normal.

As saídas com o cãozinho, que se chama Quixote, são bem curtinhas. Uma ou duas voltas no quarteirão, do lado onde não há quase ninguém.

Luvas descartáveis, delas não me esqueço; nem todos as têm… Com nenhuma roupa debaixo, só um vestido leve e fácil de lavar enquanto a temperatura permite. Até aí tudo bem, sem roupa debaixo e vestido leve, mas turbante? Pois é; como lavar os cabelos todos os dias? Daí meter lenços e turbantes.  Olho-me ao espelho e vejo uma estranha mulher meio árabe, meio futurista, pois o futuro é o presente e o presente é aqui. O pior da descrição: sem anéis, brincos ou pulseiras. Eloah sem bijus, quem diria! E com uma sandaliazinha baixa, que fica sempre do lado externo da porta do apartamento. Eloah sem saltos altos. Ô vírus do inferno! Chineses comedores de cobra, de pangolins, de tudo o que se move! Não se pode criticá-los por suas tradições, verdade, enquanto no ocidente comemos porcos, fígados de gansos e bezerros recém-nascidos. Síndrome da vaca louca, gripe aviária, suína não vieram da China. Penso que devamos criticar o hábito de ingerir carne, e pior ainda, carne de animais silvestres. Num mundo vegano, ou ovolactovegetariano isso, essa tragédia não aconteceria. Não aconteceria, pronto. Bom momento então e também para coletivas autocríticas alimentares, me parece.

*Eloah Margoni, piracicabana, é médica, ecologista e poeta.

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