A Todas as Mulheres
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Esta é uma semana especial: no dia 8 de março comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Não posso deixar passar em branco, quero abrir uma garrafa de festas e brindar. São tantas as mulheres dignas deste brinde, mas quero escrever a mulher envolta em poesia e inquietação. À maneira da vida.
A mulher, em puro enlevo, diz: há quatro coisas a mais em mim do que há em ti. Dois seios, dois ovários, quatro calvários. E se atinges da vida a matriz, fico por nove meses ostentando a cicatriz. Os dois ovários são cúmplices do amor e acolhem o ser que me sugará os seios quando a luz for vista.
São quatro coisas a mais e não são opcionais. Porque sou fêmea e pacifista. Não trago os seios como quem carrega faixas de protesto, mas amamento em favor da vida. São quatro, mas uma só a ferida. Dos ovários que não tens ao simulacro de seios que em teu peito se desenha, o retrato biológico de uma senha: és homem. Mas, quatro calvários, dois seios e dois ovários, não se têm porque se quer. Na força bruta do fato, o ultimato: sou mulher.
Não. Não são calvários os fatores da condição feminina, mas bens preciosos na evolução da vida. Porque é possível fazer um acerto de contas. Tu guardas as meias, eu arrumo a cama. Eu faço o suco de laranja, dobras teu pijama. Pões a mesa e eu faço o café. Eu lavo a louça, tu guardas tudo em seus lugares e, juntos, vivemos a fé.
Mas as mulheres são seres que, quando não abatidas a tiros, deixam-se matar pelo domínio daqueles que as executam no silêncio perigoso. Na opressão, no jugo, no medo, sub-repticiamente, inocentemente, paulatinamente, socialmente.
Tem Georgina, que é morena, está barriguda, espera um filho. Num pé-de-vento, a poeira se levanta do asfalto. Apóia-se na vassoura, vira o rosto, tosse o pó. “Qual o que, dona, a gente não sonha com vida de varredora; nunca vou virar doutora, mas um dia inda me arranjo”. E num momento de graça, Deus vem do céu e a abraça: sabe que ela espera um anjo.
Tem Eufrosina, sem dentes, sorriso frouxo. Palavras como farofa, fofa e felicidade saem sopradas, sibilantes e atônitas de sua boca. Quase sempre, volta para casa frustrada, fanha, faminta. Saúde fraca, sem forças, vai tocando a vida banguela, debruçando seu sorriso na janela.
No estoque de lembranças, dona Júlia era sábia com seu lápis de ponta vermelha, no primeiro ano da vida escolar. Seu batom, seu perfume, seu anel de professora. O tempo era tabuada pura, ó tempo feliz! O livro, uma doçura de letras que iam se escoando pelo pó do giz.
Neste estoque de saudades, eu deveria ter, num refil, para quando acabasse e eu precisasse do teu perfil. Uma foto que fosse do teu sorriso, uma camisa xadrez, um cinto de couro, abotoadura de ouro, papel de seda dobrado, pétala de rosa amassada dentro de um livro. Estas coisas tolas e admiráveis que fazem o delírio de uma mulher numa tarde de chuva.
São tantas as mulheres dignas do brinde. Para celebrar, bastam as palavras. E a vida, este poema respiratório, louva a mulher todos os dias. Assim, transcrevo de mim: passamos da Idade Média. Mulheres pensam.