Aptidão para o sonho
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Creio que nascemos todos aptos para sonhar. Trata-se de uma aptidão genética, natural, ancestral. Fomos todos abençoados com esta herança, uns mais outros menos. Aliás, como em tudo na vida. Meu pai sempre dizia assim: “sabe como é, uns mais; outros menos”.
Isso explica porque alguns nascem com dons especiais seja para a música, para números e cálculos, para prodígios de encher os olhos, enfim, com pendores impossíveis para a maioria dos mortais. Há no mundo uma casta privilegiada de pessoas, as que sobem num palco e extasiam multidões.
Um dia, quando mocinha e alguma vocação musical, pisei num palco. Cantei num daqueles festivais de música da cidade. A experiência foi enriquecedora, claro, e quem sabe teria levado a sério uma possível carreira de cantora. Um sonho?
Alguns sonhos ficam no passado e é bom que lá estejam para serem lembrados com saudade, com alegria e também com tristeza, com toda a dor de um sonho deixado para trás. O sonho me envolveu muito cedo. Digo que sou movida a sonho. Sem ele, não sei se teria suportado alguns pedaços duros da vida, quando enfrentei minhas muitas cirurgias e dores físicas.
Desde pequena, a contemplação diária do céu por horas a fio. A menina no balanço de corda, a menina sentada no muro do quintal, regendo a Terra e seus humores. Espiar o belo céu das noites invernais. Ali estava toda a minha salvação. Algo profundo iria acontecer, eu tinha certeza. Sonhar era o ato mais legítimo, mais puro e arrebatador.
Da meninice, passa-se para a vida adulta num piscar de olhos. Do namoro ao casamento. Filhos. A idade madura chega e tenta-se realizar o sonho de morar no campo. Nove anos longe da cidade e o contato diário com a natureza me fizeram mais sensível e mais atenta.
Sonho é abstração, é tocar o infinito universo da fantasia, da imaginação, a força extraordinária do pensamento nos permitindo penetrar no reino das coisas belas. Cada movimento nos pertence neste exercício de saga, heroísmo e doçura.
O sonho é a viagem da alma. Trajeto percorrido pelos anjos. Há alguns deles à nossa volta, convivendo bem de perto conosco. É preciso aguçar a vista e prestar atenção. Não possuem asas, nem são gigantes. São de estatura normal e surgem na nossa vida para nos ajudar ou nos fazer felizes no tempo necessário e exato.
Há anjos de todo tipo na viagem do sonho. Há os consoladores, em cujos ombros nos achegamos para chorar a dor de viver, a mágoa do coração, o sofrimento e a luta. Possamos cada um de nós ser para o outro esse anjo consolador e oferecer nossa poção de alívio e de paz.
Aptidão para o sonho. Eis um título para a crônica do cotidiano, despretensiosa e humilde. Palavras para enfeitar nosso dia, a saída de carro, a ida até o médico, a compra na padaria, vendo pessoas andando apressadas e a vontade de perguntar: para onde vão todos?
Estão a caminho do sonho. Com o peito cheio de fé e esperança, buscam a felicidade, o destino secreto de toda alma. E sonham. Aptos para sonhar…