CACHORRO ANDEJO

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Andando pela Rua Boa Morte observava as casas antigas que resistem à volúpia imobiliária que grassa Piracicaba debaixo do nariz de órgãos que deveriam defender seu patrimônio histórico, cidade por sinal cada vez mais distante de sua real vocação.

A cidade do bonde, das prosas nas calçadas e do folclore; das escolas, da música raiz e da arte; dos desfiles, das feiras e da religiosidade deu lugar – por vontade de políticos inconsequentes – à cidade das indústrias e todo o impacto sócio-ambiental negativo que vem junto. Gente conhecida quase não se vê; pipocam favelas, ruas estão desertas, janelas se fecham, muros sobem, estreitam calçadas e o trânsito mata. Cinemas viraram igrejas e nas festas juninas que sobraram a ‘diversão’ maior é comer. Som agressivo e de mau gosto calou a viola, o pandeiro e a sanfona que animavam as danças das festas singelas. Carnaval de rua parece mambembe. O Dia da cidade passa em branco e o dinheiro tomou o lugar de Antonio, nosso amado santo padroeiro. Em vez de mais universidades e centros profissionalizantes, esportivos, de lazer e cultura trouxeram Centro de Detenção, Presídio e Fundação CASA em dose dupla.

Mas, voltando à Rua Boa Morte, observava o bom gosto nas fachadas antigas. Casas espaçosas, cheias de janelas, portas enormes, porões e terraços. Sua mudez permitia ouvir o alegre burburinho das famílias que nelas moraram décadas atrás. Interessante pensar que o Brasil, Piracicaba enfim, eram mais pobres que agora. No entanto, as famílias eram grandes. Em casa éramos oito. Meu pai era barbeiro e minha mãe ficava em casa. Como conseguiram criar e colocar todos no caminho de trabalho, da honradez e da religião não sei, mas conseguiram.

Num casarão velho da Rua Alferes, perto dos Frades foi que nasci. Lembro-me das frestas do assoalho; tão largas que se caísse uma moeda tchau. No quintal tinha galinha e até porco. Nossas barrigas viviam cheias, de lombrigas. Minha mãe não conhecia vermífugo – ou não havia, sei lá. Fazia a gente engolir um óleo amargo. Que intestino aguentava? Tinha que calibrar o gás para não borrar o emblema do Engenho Central no meio do calção.

Meu pai alugou casa nova na Paulista. Ruas de terra, água de poço e fossa. Boiadas desciam na Estação e passavam na frente de casa deixando a rua salpicada de bosta. Depois da escola era brincar até o sol se por. Voltava sujo como tatu e até hoje ouço minha mãe dizendo: “Onde você andou, cachorro andejo?”.  Quando fazia frio ela mandava vestir ‘camisa de meia’ para não ficar “custipado”. Papel higiênico era jornal recortado apesar de o sabugo continuar na moda. Num quarto ficavam os cinco homens. Noutro as mulheres. Os colchões eram de palha, infestados de pulgas e carrapatos que minha mãe prensava na unha.  Toda noite alguém mijava na cama. Lá fora, o longínquo apito do guarda e o trotar da cavalaria espantavam ladrões de galinhas. De manhã, o padeiro já tinha deixado o pão na caixa do relógio de força. Minha mãe fazia café curtindo Zé Betti na Record. No final do dia, antes da reza do terço, ouvindo Repórter Esso, comíamos polenta com totcho; queijo, ovo ou mortadela de vez em quando.

Lâmpada elétrica valia ouro. Como a fiação não fosse embutida, nem sempre as coisas funcionavam direito. Ai do azarado que ao ligar o interruptor a lâmpada queimasse. Meu pai gritava: “Aí, mão de merda! Tá contente agora?”. Caso aprontasse algo mais grave era: “Aí animar!”, isso se não viesse uma coça por cima

Apesar de tudo e da pobreza que passamos, curti muito minha infância. Brinquei até enjoar. De fato, Piracicaba não tinha o desenvolvimento de hoje, porém a cidade era amiga, pura e acolhedora; e as pessoas mais ricas de honestidade, compaixão, caráter, respeito e temor de Deus.

É essa é a verdadeira riqueza, e não é o progresso econômico que a traz.

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