Cecílio menino
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O sobrado em Piracicaba, na esquina das ruas São José e Boa Morte, abrigava, no andar superior, a residência da família Elias. Nas tardes quentes de verão de 1945, ao lado da casa, a Sorveteria Pink, de um alemão, e a lanchonete do libanês Tuffi Elias enchiam-se de meninos da vizinhança deliciando-se com picolés, com sorvetes e com sanduíches. Outrora, o Sr. Tuffi fora estudante de Odontologia, enquanto trabalhava como carpinteiro. Abandonara a faculdade após grave acidente em que perdera um dos dedos da mão. Casara-se com Amélia Abrahão, de descendência sírio-libanesa, assim como ele, e tiveram nove filhos.
Trabalhando na lanchonete, ganhava pouco e a família, numerosa, passava necessidade. No entanto, divertiam-se. Sócios do Clube de Regatas, em frente ao Rio Piracicaba, o pequeno Cecílio Elias Netto aprendera a nadar e adorava ver o pai praticando remo. Quando não estava estudando no Externato São João, ou no Colégio Salesiano Dom Bosco, as ruas eram o quintal de sua casa para as brincadeiras de amarelinha; de burica ou bola de gude; de mocinho e bandido; de Tarzan ou para jogar futebol. Adorava as matinês nos cinemas São José e Broadway (depois Odeon e Cine Tiffany).
Os Elias não dispensavam os livros, nem os jornais. Sobre os joelhos do pai, o pequeno Cecílio aprendera a ler, a ouvir e a apaixonar-se pelas histórias e pelos acontecimentos de Piracicaba e do mundo. Nascera, em 1940, no meio da Segunda Guerra Mundial e, tanto nos balcões dos bares, quanto nos bancos das escolas, fervilhavam discussões, assumiam-se lados no conflito e acirravam-se os ânimos. Crescia, na sociedade, o preconceito racial, religioso e de gênero. Na família, o Sr. Elias cultivava valores e princípios de respeito, de ética, de honestidade e de solidariedade. Defendia o vizinho alemão, sorveteiro; o cabeleireiro de D. Amélia, o Zinho Muié, homossexual assumido, recebia, dele, o devido respeito.
Depois da guerra, virou moda fumar. Os tios e o pai de Cecílio fumavam e ele, aos nove anos, para mostrar, aos outros, que já estava crescido, também começara. Fumava junto dos irmãos e dos primos, nunca na frente do pai, que dizia que os cigarros faziam mal. Os garotos compravam-nos, facilmente, nos bares.
Quanto mais cedo ocorre a iniciação ao tabagismo, maior o risco de se tornar um fumante regular, mais grave a dependência, maiores as dificuldades em deixar de fumar e piores os danos à saúde, devido à longa exposição à nicotina. Estudo publicado em 2020, no Journal of the American Heart Association, com mais de seis mil indivíduos, revelou que, dentre os que experimentaram cigarros com 18 ou 19 anos, apenas 8% se tornaram fumantes diários, ao passo que, dentre crianças que o fizeram entre 6 e 12 anos, a taxa subiu para assustadores 50%. Segundo dados do Ministério da Saúde, 90% dos fumantes brasileiros começam a consumir cigarros antes dos 18 anos de idade. A imensa maioria comprará um maço de cigarros por dia, pelo resto de suas vidas, compulsivamente.
Aos dez anos, Cecílio aprendera a beber cerveja; aos treze, um primo, em Bauru, o levara para conhecer mulher — Marilu, chamava-se a moça. Lá, passava as longas férias de verão numa colônia de ferroviários, ou em Cosmópolis, na Usina Ester, cujo gerente era seu tio. Apaixonara-se e escrevera, para Shirley, seu primeiro amor, o primeiro poema.
Deslumbrada e influenciada pela personagem glamourosa de Ingrid Bergman e de seu par romântico Humphey Bogart, que viviam exalando charme e fumaça no filme Casablanca, D. Amélia aprendera a fumar aos 50 anos.
Historicamente, a mulher começou a fumar depois do homem, mas, após a segunda metade do século vinte, numa campanha maciça de marketing da indústria do fumo, o número cresceu assustadoramente. Anúncios em revistas vinculavam o cigarro à beleza, diziam ajudar a emagrecer e, até mesmo, o movimento de ampliação dos direitos civis das mulheres foi cooptado pelo marketing do cigarro ao vincular, à luta feminista, o ato “transgressor” de fumar. As propagandas de cigarros para os homens estimulavam o consumo, associando-o à virilidade e ao sucesso social e profissional. A pressão da indústria, para que as pessoas fumassem cada vez mais, tornou-se tão grande que, nos anos 1960, a década do pico na prevalência do tabagismo no mundo, chegou-se a alarmantes 40 a 50% de adultos viciados no tabaco.
Em Piracicaba, a elite reunia-se para conversar e para fumar os melhores cigarros, charutos e cachimbos — a maioria importados — na Tabacaria Tupã, enquanto Cecílio e os amigos seguiam comprando, no bar, os maços de Colúmbia, Continental e Hollywood.
[esta é a primeira de quatro partes desta crônica]
*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.
*Erasmo Spadotto – cartunista e chargista, criou a ilustração especialmente para este artigo.
A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.