Desavento

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(imagem de Oberholster Venita, por Pixabay)

Palavra sonora e muito forte. Conheci-a ao ouvir, pela primeira vez, a música “Romaria”, de Renato Teixeira, interpretada esplendorosamente por Elis Regina, composição de rara Inspiração! “Me disseram, porém que viesse aqui pra pedir em romaria e prece paz nos desaventos. Como não sei rezar só queria mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar!” Se Deus ouvisse tal prece considerar-se-ia muito satisfeito.

Por desavento pode-se entender desgosto, aborrecimento ou cousas que tais. Gosto se alguns dos quais sinto saudade, como o que vou relatar. Aconteceu (“Assucedeu em 1927”, como diria o impagável Pantaleão em suas conversas com Terta, sob a vigilância de Pedro Bó, personagens do extraordinário Chico Anísio) algum tempo depois. Mais precisamente 25 anos!

1952, Piracicaba preparava-se para o inverno, sempre muito frio. Cursava, então, pela primeira vez, a terceira série ginasial, na então Escola Normal “Sud Mennucci”, glória da educação paulista. Lembro-me muito do Professor Moacyr Diniz, Catedrático de Ciências Físicas e Naturais, minha disciplina favorita. Professor Diniz deve sempre ter o título de Professor grafado com maiúscula, tal seu sentimento de apego pela Ciência, pela Cultura e pela Educação. Ele conseguiu, não sei como, construir o Clube de Ciências, com sede própria situada à Rua Ipiranga, entre São João e Bom Jesus. Compunha-se de uma sala ampla. Rodeada de animais empalhados, por ele e alguns alunos que aprendiam a arte da Taxidermia com ele, que era utilizada para projeções cinematográficas, cuja renda mantinha o funcionamento do clube. Também Conferências e Brincadeiras Dançantes, algo maravilhoso para adolescentes.

Às quintas feiras, às 20 horas, a casa lotava! Os alunos deveriam vender 5 entradas, cada um, o que era muito bom para os alunos com notas baixas, pois a venda dava um bônus na média mensal. Não era meu caso, era muito bom aluno, aliás, foi lecionando Ciências em colégios, nos cursos noturnos, que me mantive depois do Curso Científico. Lecionei no Colégio Dom Bosco, na Escola Industrial e Ginásio Monsenhor Gerônimo Gallo.

Para a quinta feira, 21 de maio de 1952, estava programado um filme italiano de 1950 “Vita da cani” de Mario Monucelli e Treno, com Gina Lollobrigida, lindíssima, no auge de sua formosura! Como o Clube era muito próximo de casa, sempre ia um pouco antes das 8 horas para observar quem chegava. Reparei numa garota muito bonita que me olhou de maneira convidativa. “Oh diacho” pensei, não é que está querendo?”. Começou o filme, em branco e preto, mas de uma nitidez linda. Na verdade, linda mesmo era Gina, ‘La piu bella donna del mondo”. Me chamava mais a atenção a garota que, amiúde, me olhava.

Terminada a sessão saí com Hélio (Hélio Pires Levi) e mais dois colegas: Persão Magossi e Veroneze de Morais, o melhor aluno do Sud! Descemos a Ipiranga e entramos na Sta Cruz. Fomos até a XV, pela qual descemos em direção da Governador para virar na Morais Barros e chegar à Praça. No início da descida da XV alcançamos três garotas, uma das quais era o meu flerte. Quando ela percebeu que ali estava eu, não parou de olhar pra trás e me encarar com dois grandes  e lânguidos olhos. Quase morri! Levi disse a ela: “é pra mim que você tá olhando?” Ela disse: ”não, é para ele, e me apontou!” Atravessamos a rua e andamos mais lentamente para sairmos da mira dos dois.

Batendo papo soube que ela se chamava Ana Maria Malusá, tinha minha idade e cursava a terceira série ginasial no Sud. Disse que não a via nos intervalos das aulas. Respondeu que não saía do prédio, como a maioria. Era a número 4 da chamada, da classe feminina. Por isso não a conhecia. Quando atravessávamos a Praça, defronte à Catedral, cruzamos com um rapaz que a encarou tanto que ela ficou nervosa. Olhei para traz e ele estava parado nos olhando. Será que, hoje, vou apanhar? Mas não, ele continuou e descemos a XV em direção ao rio, ela morava na esquina da Tiradentes. Deixei-a no portão e voltei à Praça, todo vaidoso para contar aos amigos.

No Domingo seguinte, fomos ao Parque do Mirante andar em suas alamedas e conversar. Tomamos uma Cotubaína Orlando, cuja fábrica situava-se à rua Benjamim, defronte à casa de Silvio Galvão Curi, que era filho do dono da Agência Curi de Jornais e revistas. Sua casa tinha todas as revistas de sucesso: O Cruzeiro, Manchete, Fatos e Fotos, Cinemin, Revista do Rádio, Pato Donald, Tarzan, enfim, tudo de bom! Como eram caras, para mim, ia visitá-lo com frequência. Voltamos no fim da tarde, de bonde, que delícia!

Durante a semana nos víamos em um dos intervalos. Descíamos ao Centro às 5 horas, quando encerravam-se as aulas. Combinamos voltar ao Mirante às 13 horas do domingo seguinte. Quis o destino que eu me esquecesse! As aulas  iniciavam ao meio dia. Cheguei cerca de 11 horas e 45 minutos. Avistei-a junto do portão feminino à esquina da XV, com cara de poucos amigos. Pensei, o que será? Lembrei-me, então, do encontro que havia deixado de comparecer. Cheguei como se estivesse tudo em ordem. Dei-lhe meu melhor sorriso. Ela disse, com muita raiva: “Seu Merdinha! Me deixou esperando a tarde toda!” Pensei: “Se no segundo encontro me chamou de merdinha, de que seria no vigésimo?” Terminamos o namoro.

Cumpre ressaltar que ela era maior do que eu, estava furiosa, com o orgulho ferido e italiano tem, de maneira atávica, o sexto dos 7 Pecados Capitais, que é a Soberba! E não suportaria a ofensa! Este não é um desavento que dá saudade?

* Jairo Teixeira Mendes Abrahão é professor titular da ESALQ-USP, aposentado, vive atualmente em Porto Seguro – BA.

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