Desviaram seu destino

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destinoTuristas lotam a Rua do Porto no feriado. Tradicional almoço da Sexta da Paixão trouxe grande fluxo de visitantes para o ponto turístico de Piracicaba. Quem não fez reserva teve que esperar. (JP 04.04.15). O mesmo jornal disse que em 2014 a Rua do Porto recebeu durante o ano todo 1,1 milhão de turistas. Pelo menos 70% dos consumidores eram de fora. “Viemos no ano passado para conhecer a cidade e adoramos. O atendimento é ótimo e o visual do rio é maravilhoso, não tem como não voltar.” (Adriana dos Reis – turista – JP 04.04.15).

Antes de nós estava ele; exuberante e poderoso. Fascinados pela beleza e pela riqueza do pedaço, resolvemos por aqui ficar e fazer morada. Meu pai falava que o rumor do salto chegava até a Nova Suíça, bairro onde morava. Frei Marcelino dizia em sua música que Piracicaba parecia cidade descida do céu quando a neblina que saia do salto a envolvia. Cecílio Elias Neto chama a Rua do Porto de pia batismal de Piracicaba.

Houve um tempo em que o rio desfilava entre nós orgulhoso, feliz e cheio de vida. Quando extrapolava as margens para cumprir sua vocação fertilizadora, punha todo mundo pra correr. Sabiam que o espaço era dele, porém preferiam pagar o preço de ter sua alegre companhia que, além da água, peixe e lazer, ainda carrega de paz o espírito quando o sol lá na grande curva doura suas águas ao cair das tardes.

O povo, esse que constrói a cidade dia e noite, enfermo ou são nunca abandonou seu irmão mais velho, o rio; dele cuidou e com ele se solidarizou na saúde e na doença. Doença essa chamada ‘progresso’, mas que na verdade não passa de ganância desenfreada de gente que, no lugar do Deus criador desse maravilhoso planeta suspenso  no espaço a girar sobre si mesmo, colocou o dinheiro, que enrica a poucos; flagela a maioria e traz violência, individualismo e descriminação.

O rio não acreditou quando viu usinas jogarem restilo em suas águas. Ficou doente; toneladas de peixes morreram. Seus amigos gritaram. Após muita luta os cabeça-de-progresso ‘perceberam’ que aquele veneno poderia ser útil na cultura da cana, essa outra praga que dizimou nossa flora; os animais que não morreram de fome morreram queimados; soterrou nascentes, assoreou córregos e lagos; destruiu os cílios protetores do rio e de afluentes que lhe mantinham a vida.

Como não bastasse, feriram-no de morte abrindo uma de suas artérias para ajudar a abastecer São Paulo depois que gestores públicos inconsequentes soterraram e garrotearam importantes corpos d’água para atender a cobiça imobiliária e dar vazão a carros particulares a fim de agradar obesos cidadãos. Vergonha maior sentiu quando resolveram jogar nele o esgoto que nossa voragem produz. Como pode alguém que só trouxe vida receber em troca dejetos e todo o tipo de imundícies?

Ferido de morte e magoado por tanta ingratidão nosso grande amigo foi se definhando, até entrar em agonia no ano passado. Seus ossos ficaram expostos e cheio de vergonha escondeu entre as pedras sua nudez. As nuvens ouviram seu grito e vieram em seu socorro. Vendo sua agonia choraram; e ele reviveu. Está aí de novo; generoso e cheio de vida, porém até quando? Seria somente um fôlego?

Penso ter nosso amigo voltado para dizer que não mais se sente em casa. Como só vê estranhos, pergunta por que fizeram da cidade da cultura e das escolas; da moda caipira, da música, da poesia e do Elias; da pesca, do turismo, do sossego e da vida tranquila uma cidade sem identidade, violenta e doente?

“Desviaram seu destino. Seu sorriso de menino, quantas vezes se escondeu. Mas renova-se a esperança. Nova aurora a cada dia. E há que se cuidar do broto. Pra que a vida nos dê flor e fruto”. (Milton Nascimento).

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