Duas Orelhas

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infancia

Dia da Criança, meu dia. Aos que podem, presentes e festas. Assim todos os anos. Não acho ruim. Serve para virar o comércio e empregar gente, embora o trabalho roube meus pais de mim todos os dias. Voltam tão acabados que nem me atrevo. Entretanto, vocês já deveriam ter percebido que na verdade eu sou o presente dado por Deus para relembrá-los que a alegria de viver está nas relações, não nas coisas.

Sou eu que uno casais e lhes trago sabor à existência. Mesmo quando chego com alguma deficiência acabo pondo sentido em muitas vidas, que se tornarão plenas graças aos cuidados a mim dedicados; por sinal, Deus não manda para qualquer um quem requer cuidados especiais. Também trago alegria a muitos lares, afinal se vocês me fazem criança eu de minha parte, propicio-lhes a oportunidade de viverem a apaixonante aventura da maternidade e da paternidade. Por causa de mim desabrocha a imensa capacidade de amar escondida em seus corações; também a paciência, a coragem que vocês pensavam não ter e a responsabilidade que em vocês dormia.

Faço vocês voltarem cedo para casa, passar noites em claro sem maldizer a vida; rolar pelo chão, pagar mico, fazer caretas, falar errado e virarem tolos. Quando ficam maduros e a solidão começa a rodear seus passos, volto trazendo-lhes a alegria de serem avós. Não os deixo envelhecer porque poderiam perder o Reino de Deus, acessível somente a quem se faz criança.

Contudo, muitos não percebem a graça que vem comigo. Não entendem que passarei pelas suas vidas rapidamente. No lugar de curtirem minha presença, e assim criarmos sólidos laços de cumplicidade e empatia, terceirizam meus cuidados. Outros me deixam em creches, onde mães, que também seus filhos deixaram – sempre sobrecarregadas e ganhando baixos salários – cuidam de mim. Não é um contrasenso? Terei que competir, ficar doente ou causar problemas para ganhar um pouco de exclusiva atenção.

Na escola que vocês para mim prepararam sem nunca me perguntar se gosto ou não, devo aceitar tudo, pois já em tudo pensaram. Em vez de pessoas livres e felizes ela prepara seres funcionais. Serei um adulto inteligente, produtivo, útil, sociável, esperto, porém bitolado, consumista e sem senso crítico; ideal para apertar teclas, votar em rosados políticos e frequentar shoppings. Meus sentimentos, sonhos, afetos, angústias e desejos não lhes interessam. Embora tenham duas orelhas e uma só boca, falam mais que devem; ouvem ‘mestres’ de teorias pedagógicas e não me dão ouvidos, que sei mais de mim que todos eles.

Contudo, já que insistem em me presentear vou lhes dar algumas dicas.

Serei criança uma só vez. Devo viver plenamente minha infância – brincar, correr, cair, chorar, errar, descobrir, experimentar – pois dela vai depender meu futuro. Não me transformem em mini-adultos enchendo minha vida dos afazeres que vocês julgam necessários para eu ser um cidadão responsável, ou me esnobar para os outros. Não me interessa a idade madura. Nem sei se até lá chegarei. Além do mais, Deus colocou em mim a vocação que me trará sustento e me realizará como pessoa. Se quero ser mecânico não me forcem a ser engenheiro, e se vim para ser árvore não deixem que vire arbusto.

Se me querem adulto sensato e feliz cuidem primeiro de vocês mesmos para que nossa família seja forte. Sejam coerentes, modestos, transparentes, honestos, e sinceros. Não façam concessões e nem se escondam dos seus erros. Não se matem de trabalhar. O excesso de trabalho nos afasta e pode ser que não mais encontremos o caminho da volta.

2 comentários

  1. Thais Helena Guidolin em 11/10/2013 às 03:04

    Belo, belo artigo senhor Antonio. Belas e sábias palavras, oxalá sirvam para trazer um pouco de luz a caminhos tão pouco lúcidos que tantos pais ando percorrendo na criação de suas crianças. Parabéns colega.

    • Antonio Carlos Danelon em 12/10/2013 às 17:55

      Obrigado Thais. Ser lido já é bom imagine elogiado.

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