Éramos quatro

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Havia entre mim e Amílcar um sentimento muito forte e puro, de pertencimento, de doação e de comunhão. Sentia-o parte de mim e, em nossos planos de jovem casal, imaginávamos nossos filhos. Em meu coração, já os amava, antes mesmo de eles existirem. Um amor terno, cálido, abnegado e sem reservas. Planejamos sua vinda e desejávamos dois, para que os irmãos pudessem ter um ao outro no companheirismo e na conexão única fraternal.

Tão diferentes um do outro! Heitor, com seu jeito calmo, plácido e centrado, aprendia tudo o que ensinávamos, atento e curioso pelas coisas do mundo. Heitor respira razão. Por outro lado, cheio de vida, de agitação e de barulho, Ivan passeava pelo mundo despertando emoções. Amava a terra e tudo o que, dela, vinha. Apaixonara-se, pequenino, quando, nas férias, explorava o terreiro, o pomar e o curral da Fazenda Poço, do bisavô, em Minas Gerais; aprendera a cavalgar e a pescar com o avô Dorivaldo; na pandemia da COVID, colhera três safras de feijões, plantados em floreiras no quintal, além dos abacaxis e do avocado, no pomar. Punha em prática o que aprendia no curso técnico em agropecuária na ETEC José Coury. Orgulhava-se de trilhar passos semelhantes aos do irmão, que cursara o técnico em Química e fora aprovado em Engenharia Química na USP. A horta caseira, semeada com crotalária, verdeja, exuberante e, logo, deixará, na terra, o seu legado.

A crotalária, leguminosa de rápido crescimento, segundo a EMBRAPA, tem o plantio indicado na entressafra. Uma de suas principais funções, o combate aos nematóides, além de promover a recuperação de solos inférteis e degradados, mostra excelente capacidade de fixar o nitrogênio atmosférico no solo e de produzir massa celulósica, funcionando como um adubo verde.

Ivan acompanhou-me, nos grupos de caminhantes, saindo, nas madrugadas escuras em frente à ESALQ, às trilhas no Horto Florestal de Tupi e ao exuberante passeio de barco no Tanquã; nadou comigo na lagoa; deixou-me para trás na trilha do Morro Azul; vislumbramos a Baixada Santista na descida dos Caminhos do Mar — a conhecida Estrada Velha de Santos e juntamo-nos ao Heitor na visita ao complexo astronômico do Pico das Cabras, no distrito de Joaquim Egídio.

Enchera-nos de orgulho ao receber a maior honraria do esporte no Clube de Campo de Piracicaba — atleta do ano 2023 no judô. Aprendera, com o sensei Edinho, ao longo de mais de dez anos de dedicação, os sábios princípios da modalidade — a cortesia, a iniciativa, a postura e o respeito. Com a faixa marrom fechando o judogi (quimono), lutara o último campeonato, o Paulista sub-dezoito.

Tal respeito transbordava na presença do avô Dorivaldo, no cuidado e na atenção com ele. Juntos, pescaram, torceram no Barão de Serra Negra e deram as primeiras voltas de automóvel.

Buscara, ele próprio, neste ano, os sagrados sacramentos da Primeira Eucaristia e da Crisma e mostrara-se encorajado e fortalecido no testemunho de amor na fé cristã. O porte altivo, conquistou com dedicação ao corpo. Perseguiu a nutrição saudável e o esculpia nos aparelhos da academia. Ganhou a companhia do avô Walter e do pai na torcida apaixonada pelo Corinthians e nas transmissões da NBA — a liga de basquetebol americana. Destemido, tomava ônibus e metrô rumo aos parques Villa Lobos e Ibirapuera em nossas viagens a São Paulo para jogar basquete de rua.

Nosso menino cresceu, comprou camisas e botas novas, perfumou-se e percebeu-se belo. Nas brincadeiras, conhecia, de cada um, o ponto fraco, debochando e “zoando” os amigos. Dedicava e comunicava, dessa forma, o seu amor, cativando a todos por onde andasse. Se houvesse lido Saint-Éxupery, saberia que se tornara eternamente responsável por uma legião de amigos, de colegas, de mestres e de parentes, pois os cativara no coração.

Veio o amor “Eros”, o amor mundano. Enamorado, apaixonou-se, com a intensidade avassaladora de seus dezesseis anos e, no dia 23 de Julho, não sei o porquê, resolveu que não conseguia mais ficar aqui neste mundo. Ouso pensar que, cheio da graça do Espírito Santo, deixou-se cair nos braços da Mãe e, curioso, foi descobrir, com pressa e urgência, os mistérios guardados na vida eterna.

Ficaram para trás o calor das brincadeiras, o ruído, as risadas. Tomaram espaço o vazio imenso em meu peito, o lugar faltando à mesa da cozinha, a calma incomum em nossa casa.

               A noite vinha fresca, brisa suave, refrescante.

E a chuva, fina, mansa, gostosa.

De repente, chegou o trovão Ivan.

O chão estremeceu, o vidro da janela chacoalhou com o estrondo.

Não houve quem não levantasse o olhar para aquela luz tão clara e resplandecente, transbordando amor.

Tudo ao extremo: o extremo do amor, da alegria, da energia.

Assim como veio, tão logo passou e a noite retomou a mansidão.

Todavia, todos que se alegraram ao ver aquela luz, jamais a esquecerão. Terão que reaprender a sentir a chuva calma, sem ele.

                                                                                                                            (Marília Barbosa Lenik)

*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.

*Erasmo Spadotto – cartunista e chargista, criou a ilustração especialmente para este artigo.

A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.

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