Escrever é sonhar

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tremEstou numa fase de sonho (até já encontrei o sonhado travesseiro…). Creio que escrever é libertar o sonho, as lembranças. Nas minhas recordações, estou acima do mundo e de mim mesma. Encarapitada no muro do quintal, comendo um maravilhoso pão sovado com manteiga, eu era a menina mais feliz do mundo, observando os pombos se aninhar junto à mangueira da nossa casa.

Anoitecia, e cada estrela que se acendia era um incêndio de felicidade para a minha alma. Havia música no céu, na terra, num mar distante que eu ainda não conhecia, mas que me chamava, me chamava, eu podia ouvi-lo dia e noite sem cessar. O chamado vinha do mapa do Estado de São Paulo que a professora usava em sala de aula. Ela pegava o ponteiro de madeira, apontava-o para o Oceano Atlântico, eu me via naquelas águas e meu coração navegava.

Uma vez, uma colega contou que já conhecia o mar. Não sabia nadar, mas não afundou, porque conseguiu sentar sobre uma onda e se deixar levar até a praia. Passei uma noite em claro pensando neste salvamento fabuloso, tentando saber como isso fora possível. Nos meus sonhos, eu também me sentava sobre as ondas, não de volta à praia, mas pelo mar adentro, num ir embora sem fim, no alto mar da vida que me chamava para algum lugar. O mar era feito de dor, de uma lonjura misteriosa, inatingível e bela, pendurado na parede da sala de aula.

Nem tudo é dor; a vida tem suas doçuras. As minhas era passar as férias escolares em São Paulo, na casa da madrinha. O que era São Paulo para uma criança, entre os anos 50 e 60? Puro mistério. Sair de Piracicaba e ir para a capital, numa viagem de trem – glória das glórias. Só quem viveu uma aventura destas na infância, para visitar a tia amada, pode entender o encantamento. Oh, quando passávamos pelas fazendas e sítios e víamos as mulheres estendendo roupas no varal, ordenhando as vacas e acenando para o trem. O panorama que eu via não era apenas real e concreto, mas um quadro gravado nas retinas, para sempre.

Quem teve a graça de fazer esta travessia pode compreender a emoção viajante da menina. Apenas uma sobrinha que ia visitar um anjo vindo ao mundo para fazer rir? Não. Somente Deus tinha conhecimento da revolução pacífica no fundo da tímida alma junto à janela, durante as 3 horas de viagem. A paisagem era um filme, o corpo tremendo no sacolejo do trem. A vida era um filme lindo.

Estou numa fase encantada. E também porque estou nocauteada de sonho. Um comboio iluminado apita na campina em que brincamos um dia. E houve um tempo em que tivemos 18 anos. Deixem-me ficar quietinha aqui, por favor. Quero sonhar. Quero entender o que está acontecendo, e dar uma marcha à ré no tempo, para ver como é que seria, santo Deus!…

Estou numa fase que costuma acometer a maioria das pessoas, numa certa altura da vida, quando se olha para trás e se avalia a caminhada, as lutas, os sofrimentos, as perdas. E os ganhos.

Ainda estou naquele trem. Ainda vou crescer. A viagem é maravilhosa. Quero ficar em silêncio, imóvel, extasiada com tanta beleza. Ela existe. Não preciso comer nada, nem beber, nem me agasalhar. Nem ler os livrinhos que o moço do trem vem oferecer aos passageiros. Não posso tirar os olhos da paisagem. Poderá surgir, de repente, uma cena imortal e não quero perdê-la. Estou naquele trem, mas já é muito tarde. O sonho me alimenta e o Anjo do meu lado segura a minha mão.

Escrever é sonhar…

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