Faquir Al Balat visitará Piracicaba

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faquir

Foto: Cartum de Waldez Duarte

Piracicaba, interior de São Paulo, nos idos de março de um dos anos trinta, era uma cidade provinciana, muito provinciana! Provavelmente já era reacionária! Meu irmão Ibrahim Otavio costumava lembrar-se de amigo paulistano que dizia: “Interior é chão parado, marasmo!” Frase que podia ter o adendo: “numa modorra choramingas!” Frase muito do gosto do Prof. Osvaldo Pereira Godoy, meu tão querido amigo e colega na ESALQ, Vadinho.

O fogo da cidade explodiu com a manchete do Jornal de Piracicaba, então um bom jornal, daquela quarta-feira do mês de julho: “Faquir Al Balat deverá visitar Piracicaba!” Balat era um espiritualista indiano, famoso por previsões que fazia, dizia ele, através da energia proveniente de seus neurônios! Energia sempre foi mezinha para mitigar a ignorância humana! Dizia-se até que descendia de Harrum Al Rashid, aquele das “Mil e uma noites”!

Grupo de destacadas damas da elite piracicabana se alvoroçou e resolveu encontrar uma maneira digna de recebê-lo e homenageá-lo! Reuniram-se na residência de uma delas. Para aquecer os ânimos serviu-se licor Chartreuse. Alguém sugeriu: “Por que não uma conferência?” “Será que ele fala português?” Dona Branca Azevedo, sempre sensata disse: “Minha amiga Eugênia (Dona Eugênia da Silva, hoje nome de rua) sabe de alguém que parece conhecê-lo, por que não falamos com ela?” Uma dama, nariz empinado, tentou dissuadir o grupo: “Ela deve estar cuidando dos pobres!” Olhares de reprovação a fuzilaram! “Vamos procurá-la” – decidiu a dona da casa. Algum tempo depois chegaram.

Dona Eugênia estava muito atarefada, separando um monte de agasalhos usados que arrecadara para pobres. Aquele inverno prometia! Convidou o grupo a entrar. Exposta a situação, a benemérita senhora falou: “Ele talvez não aprove o fato de eu revelar nossos diálogos, mas como me parece uma boa causa, vou contar. Trata-se de meu querido amigo Otavio (Otavio Teixeira Mendes) da “Escola Agrícola”. Escola Agrícola era como se chamava a ESALQ de hoje. A de nariz empinado diz: “Ah! Otavio Mendes, todas o conhecemos!” Mais uma fuzilada de olhos a calou! O grupo dirigiu-se ao ponto do bonde atrás da Matriz de Santo Antonio.

Uma vez no Campus dirigiram-se ao Pavilhão de Engenharia e à sala de Otavio. As ilustres senhoras sentaram-se diante do brilhante professor, catedrático de Mecânica e Máquinas Agrícolas. Sentado à mesa, ampla, ocupada em sua maior parte por seu grande gato Zagloba, quase tão feio quanto ele! Cruzando a perna esquerda sobre a direita, retirou do bolso da camisa, de linho branco, um maço aberto de cigarros Castelões, com muita habilidade bateu, de leve, o maço sobre o indicador esquerdo, de modo que as pontas de alguns sobressaíssem. Ofereceu, então, às convivas, que obviamente recusaram. Note que, à época, isso era elegância! Graças aos nossos vizinhos do norte e a terrível propaganda exercida pelo cinema! Também fui vítima dela!

Otavio ouviu a querela e ponderou: “Senhoras, já que meu segredo foi vazado, não posso negá-lo. Sou amigo do Faquir Al Balat. Trocamos correspondência há muito tempo! “Será que ele pode fazer uma conferência?” Dona Damaris, esposa de conceituado esculápio local, a de nariz empinado (não confundir com a da goiabeira!), tinha uma “queda” por Otavio! “Não! Nem pensar! Além do problema da língua, ele não suporta conferências! Mas, certamente poderia fazer quiromancia! Segurar, suavemente, mãos femininas é do seu agrado. Pensem no seguinte, dia primeiro de agosto, aniversário da cidade haverá quermesse na praça da Matriz. Seria uma grande atração, pode render bom dinheiro para as obras da Catedral!” “Será que pode render mais do que a víspora de Dona Branca?” – alguém resmungou. “Há um problema: ele não é jovem. E estaremos em pleno inverno. Ele só pode atender seis vít …, pessoas! Dez minutos cada uma! Mais de uma hora …!” “Então vai render pouco!” –arriscou Dona Damaris, toda regateira! “Não se cobrarmos um bom preço. Será que damas tão ilustres não encontram seis amigas como esposas de usineiros dispostas a pagar cem dólares pelo atendimento? Já pensaram em quantas noites Dona Branca precisa para atingir esse valor?” “Fique tranquilo Otavin … Otavio! Eu mesma serei a primeira!” – disse Dona Damaris sob novo fuzilamento de olhares!

Liberadas as damas, Otavio começou os preparativos. Metódico, como todo espírito matemático, alcançou sua caderneta e anotou: falar com Felipão (Felipe Westim Cabral de Vasconcelos, catedrático de Horticultura ) – tenda; Brieger (Frederic G. Brieger, catedrático de Genética) – orquídeas; Zé Bene (José Benedito de Camargo, catedrático de Engenharia Rural e Hidráulica) – estrutura da tenda e Accorsi (Walter Radamés Acccorsi, catedrático de Botânica) – ervas aromáticas.

Nesse momento dentram Carlos (Carlos Teixeira Mendes, catedrático de Agricultura Especial), seu irmão e um jovem desconhecido. “Otavio, o que é esse alarido feminino que passou por nós?” “Grandes planos!” – diz Otavio olhando para o infinito! “Otavio, Otavio, veja bem o que está fazendo! Lilia já ouviu murmúrios sobre um acontecimento que está sendo preparado para a quermesse!” Tirando a última tragada do Castelões, deu um sorriso malicioso e digrediu: quem é o jovem?” “Ah!, é o filho de um amigo, calouro deste ano, Hugo de Almeida Leme. Ele é louco por máquinas e motores e gostaria de ajudar aqui nas horas vagas.” “Ótimo! Um estagiário! Hugo, já tenho um servicinho pra você: procure o Gorga, no galpão, e veja se consegue um tábua de 50×50 e pregos com pontas bem afiadas, uns cem! Faça-me uma almofada de faquir! E sem perguntas!”  Hugo viria, tempos depois, a ser catedrático de Mecânica, na vaga deixada por Otavio, e, mais bom tempo depois, convocado para ser Ministro da Agricultura do “Movimento” de 1964!

Tudo pronto para o que poderia se chamar Operação Faquir! O dia da quermesse aproximava-se celeremente. A Praça da Matriz parecia um pátio de obras! Otavio e Felipão escolhiam a melhor localização da tenda do faquir.  “Eureca!” Exclama Felipão dirigindo o olhar para o imponente prédio da esquina da Rua Morais Barros, o Hotel Central, a joia da arquitetura da cidade! Ali será a Tenda de Al Balat! Otavio só olhava. “Veja Otavio, A Porta Monumental, seguida de pequena escada de mármore de Carrara branco! Zé Bene faz umas colunas de madeira encimada por tesouras de Cremona que tanto gosta! Suportarão o peso dos vasos que darão a sensação de um oásis! As orquídeas do Brieger e uma pequena corrente darão a sensação de frescor das noites dos desertos!” “Frescor? Com esse frio que está?” – reclamou um ajudante. O inverno estava rigoroso! Accorsi, que acabara de chegar, foi logo dizendo: “Otavio, seu faquir vai suportar o frio?” “Não sei, Walter, mas são só seis leituras quiromânticas! Penso que dá.”

Chegando em casa disse quase gritando: Leona, como tratava Leonina, vá já à Porta Larga e me compre uns panos bem coloridos. Podem ser de seda e um mais leve, azul turquesa. Com os coloridos me faça um ‘dhoti’ e com o azul, um grande turbante. “Sabia que ia sobrar alguma pra mim!” Era 31 de julho, véspera do esperado evento!

O dia primeiro foi uma correria! Às dezoito horas tudo estava pronto! A tenda, à porta do hotel, estava maravilhosa! Curiosos se juntavam para ver o trono do Faquir com sua almofada de pregos muito ponteagudos!

Às sete e cinqüenta e cinco, chega o taxi do Mennucci com o Faquir de Al Balat! “Oh!” – gritou Dona Damaris, na primeira fila, que já tinha umas trinta senhoras! Alguém avisou que Otavio se resfriara.

Al Balat desceu do taxi, recusou ajuda e se dirigiu ao trono! Habilmente livrou-se da almofada e sentou-se sobre a almofada do trono. Somente Carlos percebeu a operação e disse para Lilia: “Esse Otavio!!!!!”

Dona Damaris foi chamada e toda regateira sentou-se diante de Al, que já se tornara “de casa”! Não sem antes roçar seu joelho com o de Al, que esboçou um sorriso malicioso! Tomando sua mão esquerda com muito charme, acariciou-a suavemente e, graças à sua profunda inteligência e pelo que conhecia de Dona Damaris, e que não era pouco, foi lhe fazendo previsões que ela ouvia e quase desmaiava!

Otavio se utilizara de uma barba negra postiça que, além de torná-lo irreconhecível, disfarçava sua feiúra! Assim, passou-se a noite até que a fila chegou ao fim! Quase trinta mulheres e alguns homens!

Aí aconteceu o pior! Depois de horas sentado, na posição de Yoga, com aquele frio, como previra o operário, não conseguia se mexer! “Nossa, o Faquir está ‘intanguido’!!!” Em linguagem rural antiga, ‘intanguido’ é o mesmo que encarangado!

Assim o colorido Faquir Otavio Al Balat foi hospitalizado!

Nota: este caso foi baseado em fatos verídicos!

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