Irmão Jumento
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Dizem que São Francisco chamava seu corpo de “irmão jumento”. Tratou-o a pão e água, grosso modo falando, durante a vida toda. Não lhe deu moleza. Sua meta era Deus e sabia que seu corpo não iria colaborar. Por isso colocou-o na rota desse desejo, dominando-o e fazendo dele seu servo. Somente no final reconheceu ter sido duro em demasia com ‘seu jumento’.
Não importa aqui discutir o comportamento do santo, até porque não estamos na cabeça dele para saber como pensava. Certo ou não, se não tivesse tido a radical atitude de abandonar a vida de orgias e futilidades que levava, provavelmente não teria se tornado um dos homens mais influentes da História. Alguém se lembra de algum glutão ou beberrão que tenha servido de exemplo?
No meio religioso foi corrente a ideia de que o corpo seria uma espécie de prisão da alma; um inimigo do espírito; um empecilho à salvação; por isso, cabresto nele. Hoje, predomina a ideia de que somos um ser único e nosso corpo reflete nosso espírito. “A lâmpada do corpo é o teu olho. Se teu olho estiver são, todo teu corpo ficará também iluminado; mas se ele for mau, teu corpo também ficará no escuro. Por isso, vê bem se a luz que há em ti não é treva. (Lc 11, 34–36). De qualquer modo, não há como negar que o comportamento de Francisco nos incomoda.
Pessoas que vieram para serem frondosas e frutíferas árvores, por falta de disciplina acabaram arbustos. A falta de autocontrole fez muitos perderem talentos que poderiam tê-los feito felizes e melhorado o mundo. Quantos deixaram de plenificar-se como pessoas porque curtiram mais a preguiça que os sonhos. Mimados da mamãe se deixaram levar por impulsos e acabaram perdendo liberdade, nome, respeito e até a vida. Muitos políticos poderiam entrar para a História como brilhantes estadistas, porém, não resistiram à bajulação, à ilusão do poder e à cobiça. Relacionamentos promissores viraram cinzas porque o ciúme falou mais alto.
Segundo Kobo Abe, romancista e dramaturgo japonês (1924-1993), “A liberdade não consiste só em seguir a sua própria vontade, mas às vezes também em fugir dela”. Não tem como viver em sociedade e satisfazer todas as nossas vontades. Aliás, o ser humano equilibrado é aquele que toma posse de si e tem domínio sobre seus desejos, mesmo os mais legítimos, afinal dependemos uns dos outros, já que sozinhos voltaremos às cavernas. É a convivência que nos civiliza.
“Vencer a si próprio é a maior das vitórias”. (Platão, filósofo grego 428/348). E a maior das derrotas é ser dominado pelos próprios instintos. O derrotado não aceita ficar para trás. Ergue muro, bota cerca e não se importa se o frio que sai do seu ar-condicionado esquenta ainda mais o já insuportável calor dos outros, e nem se seu modo de vida prejudica a maioria. Consumidor voraz, o derrotado custa caro para a sociedade. Por causa dele temos leis que punem até gente boa.
Vence a si próprio quem recusa regalias enquanto seus companheiros nem o básico têm; quem não aceita preferência ou vantagem e nem tira proveito dos outros; quem enquadra seus defeitos e corta vícios para não ser pesado a ninguém; quem não faz concessões ao mal e nem abandona companheiros na hora da tormenta para salvar a própria pele; quem da tarefa vê o todo a ser feito e não somente sua parte; quem cede a vez, não buzina no ouvido dos outros, tolera erros por saber que os seus podem ser maiores; quem luta pelo bem de todos por saber que é impossível ser feliz sozinho. O vencedor coloca-se por último porque esse é o lugar que não desperta inveja. É o lugar dos sábios já que a tendência é subir enquanto a do primeiro é cair.
“Quer pouco, terás tudo. Quer nada, serás livre”. (Fernando Pessoa).