Leopardi finalmente chegou ao teatro brasileiro

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giacomo-leopardi-1-638Finalmente uma boa notícia no horizonte cultural brasileiro: está em cartaz, no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, a peça “Zibaldoni”, baseada na obra de Giacomo Leopardi (1798-1837), um dos maiores poetas europeus do século XIX. Ainda não tive a felicidade de conferir a adaptação de Aimar Labaki, mas sei que o título remete a Zibaldone di pensieri, extensa obra do autor italiano que reúne inúmeras reflexões sobre a natureza e a arte, além de considerações sobre aspectos científicos.

Com efeito, há várias reflexões atualíssimas no Zibaldone que demonstram o grande interesse do poeta italiano por temas científicos, com nítidas influências sobre famosas poesias dos Canti, como, por exemplo, L’infinito (que, de acordo com a mídia, é declamada no palco em suas várias versões para o português). Inicialmente, cabe ressaltar que Leopardi demonstrou ser um grande observador de fenômenos naturais em muitas poesias dos Canti. É claro que tais observações adotavam o ponto de vista de um grande poeta que observava o homem interagindo com tais fenômenos e sendo frequentemente vítima fatal deles.

O poeta de Recanati, cidadezinha da região italiana Marche, por exemplo, e nisto foi profético, não acreditava no aperfeiçoamento do ser humano por meio das descobertas científicas. Evidentemente, é preciso considerar o fato de que, falecendo muito jovem, Leopardi não pôde conhecer, por exemplo, as teorias de Darwin, apenas para citar uma das tantas descobertas científicas do século XIX.

Não há contradição ou incoerência, porém, entre o desprezo pela futilidade da sua época e a curiosidade científica que Leopardi demonstra no Zibaldone e que, indubitavelmente, se reflete nos Canti. No Zibaldone, o poeta “confessa” que a maturidade lhe trouxe também um renovado interesse por todo o saber humano, e, portanto, não apenas o que estava relacionado às artes e à literatura:

O desprezo e o ódio de Leopardi pelas ciências “naturais” foram gradativamente cedendo lugar ao profundo interesse por toda forma de conhecimento, incluindo o filosófico-científico. De resto, o jovem Leopardi, naturalmente inclinado às letras, não desdenhava, por exemplo, a astronomia, a ponto de escrever, com quinze anos de idade uma Storia dell’astronomia. Assim como as traduções do grego, entre outras demonstrações da sua precoce genialidade, esta obra pode ser considerada um genial trabalho escolar de um adolescente, servindo de aparato crítico para demonstrar, mais uma vez, a notável curiosidade científica leopardiana.

O Leopardi da fase mais madura, isto é, das últimas poesias dos Canti e das Operette Morali (Opúsculos Morais) não apenas valorizava o saber científico, como fazia dele o elemento inspirador de suas composições. Inicialmente, seria preciso definir também o gênero literário em que poderiam ser enquadradas tais composições. Há os que as consideram meros opúsculos, mas há também os que as definem como diálogos filosóficos que tomariam como modelo as composições de Diderot e Voltaire. Constata-se, no entanto, que algumas dessas composições poderiam até mesmo ser denominadas como diálogos pseudocientíficos, constituindo até mesmo algumas antecipações da ficção científica do final do século XIX. Basta observar o pessimismo cósmico da operetta Cantico del gallo silvestre, na qual o poeta de Recanati imagina um fantástico galo, com os pés na terra e a crista no céu, que com o seu canto prevê a destruição final do mundo. O narrador afirma ter encontrado documentos que comprovariam a existência do galo-profeta, mas é interessante notar que se trata de uma espécie de pseudo-ficção científica, na qual os elementos ficcionais estão diretamente associados a transformações monstruosas de seres vivos, graças às quais teria sido possível uma ligação direta entre a Terra e o Céu, com a consequência terrível e fatal de uma revelação inédita, profetizando o fim dos tempos.

Evidentemente, tanto o Cantico del gallo silvestre, das Operette morali, como as poesias Canto notturno di un pastore errante dell’Asia e La ginestra, demonstram cabalmente que Leopardi considerava a vida humana apenas e tão somente uma preparação para a morte, entendida como a dissolução final das coisas. A notória indiferença da Mãe-Natureza, tão discutida pelo poeta em quase todas as composições maduras, insere-se, na sua visão, dentro de um processo de reciclagem contínua, em que os seres humanos nada mais seriam do que elementos carregados de energia vital destinada a uma contínua destruição e posterior reciclagem. Tudo isso, é claro, só acabaria com a destruição final profetizada pelo galo silvestre.

E o que dizer do opúsculo Frederico Ruysch e le sue mummie (Frederico Ruysch e as suas múmias)? A personagem protagonista, isto é, o naturalista (ou cientista) holandês imaginado pelo poeta discute o tema da morte nada mais nada menos do que com os corpos que ele mumificou. O elemento fantástico, aqui também, e mais ainda do que no opúsculo anterior, surge apenas para corroborar as teorias do nosso autor sobre o papel da morte, finalidade única da nossa existência e única capaz de eliminar a “noia”, o tédio mortal que se interpõe entre os momentos de prazer e dor. A situação inusitada criada no opúsculo não visa ao efeito fácil de estranhamento, destinado a provocar medo ou sensação de desconforto e repúdio no leitor, mas tão somente a ilustrar conceitos expressos, por exemplo, no Zibaldone ou subjacentes à interpretação dos versos das mais famosas composições poéticas leopardianas.

Neste sentido, Leopardi retoma a grandeza das imagens de horror de certas passagens da Divina Comédia, embora, evidentemente, não haja o propósito “didático” do poeta florentino que visava à correção dos rumos da humanidade, de acordo com a sua visão cristã e franciscana. Em Leopardi, o “horror” tenciona chamar a atenção do leitor para a necessidade de um solidário movimento de conscientização universal que não nos faça mais ter ilusões a respeito da condição humana e de falsas liberdades prometidas pelo cientificismo e pelo progresso material e tecnológico.

Leopardi, portanto, era contra o cientificismo, e não contra a difusão do conhecimento científico. Em todos os seus escritos, transparece uma profunda piedade pela condição dos seres humanos, que eternamente submetem outros homens, sábios ou não, deuses e todo tipo de entidade mística a perguntas que jamais terão respostas definitivas.

A grande conquista do pensamento do genial poeta de Recanati continua sendo, portanto, a solidariedade à qual ele conclama a humanidade nos famosos versos de La Ginestra. Naturalmente, ele sabia que a conscientização dos homens passaria pela difusão de todas as formas de saber, desde que tais conhecimentos fossem submetidos ao olhar crítico. A quem pertenceria a tarefa de observar criticamente a notável ampliação do conhecimento em geral no século XIX? Leopardi certamente acreditava que tal missão cabia principalmente (mas não unicamente) aos poetas.

*Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

2 comentários

  1. Aimar Labaki em 10/03/2017 às 13:25

    Agradeço a excelente introdução a Leopardi e a menção a nossa montagem. Convido o articulista a nos visitar. Adoraríamos também levar o espetáculo a Piracicaba. abraço, Aimar

  2. Sérgio Mauro em 15/03/2017 às 11:49

    Gostaria de agradecer tanto ao jornal “A Província” de Piracicaba, pelo destaque dado ao meu texto, nestes tempos refratários à boa cultura, como também a Aimar Labaki, pela sua gentileza na avaliação do meu artigo. Abraços, Sérgio Mauro

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