Lolico, Bafafá e a morte desejada
Os textos de diferentes autores publicados nesta seção não traduzem, necessariamente, a opinião do site. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
Lolico, normalmente ensonado, espichado sobre uma bancada de granito verde Ubatuba que existe na cozinha, próxima do fogão, mal abriu os olhos pela minha aproximação.
– E aí, gato simulado, fingindo dormir? Posso saber por que?
– Claro que pode, senhor! Pra ver se você não me enche o saco!
– Em primeiro lugar você sabe que não gosto que me chame de senhor! Em segundo lugar, qual a razão da grosseria?
– Sabe Jairo …
– Sei, sim e muito bem! Você está com vergonha por ter chorado!
– E você, não tem vergonha por não ter chorado?
– Lolico, meu querido, só a beleza me faz chorar! A tristeza, não!
-Já sei, “a morte não me emociona!”
– Sei tudo que você pensa, gato pretensioso! E, morte desejada,
não está em seu pensamento.
– Claro! Não há morte desejada!
– Só para gatos estúpidos com você! A morte, de um modo geral é não desejada, mas há aquelas que o são! Como a de Martinha, pois inevitável e causando sofrimento desnecessário a ela e a nós!
– Você não tem sentimentos, Jairo! Pelo menos chame-a pelo seu nome correto, Bafafá!
– Deixe-me dizer-lhe um coisa, Lolico, Desde que me conheço por gente …
– O que faz muito tempo!!!
– … que em casa o nome dos gatos e cachorros se altera em função de acontecimentos importantes! No caso presente foi Mirtes a responsável. Em Piracicaba houve uma mulher, importante, muito conhecida, foi até vereadora: Ditinha Penezzi! Tinha duas filhas Marta e Escolástica. Referindo-se a Marta, disse certa vez: “ela não sabe nem fritar ovo! Ela é só beleza!!!” Pois bem, Mirtes observando os gatos que brincavam e corriam no jardim, enquanto Bafafá, belíssima, dormia, comentou:
“Bafafá parece a Marta Penezzi, é só beleza”! A partir de então passou- a chamar-se Martinha!
– Voltando à vaca fria, você deveria se dar por muito feliz dessa assertiva! Ninguém lhe trataria melhor que eu! Se eu morresse …
– Outra morte desejada?
– E por que não? Já desejei morrer, você, não?
– Sai de mim friagem!!!!!
– Será que podemos voltar a falar sério?
– Sim, meu senhor.
– Não me provoque, gato leucêmico! Sabe, Lolico, já perdi grandes tesouros! O primeiro foi meu pai, que morreu precocemente, aos 56 anos! Eu tinha 18. Para mim foi uma morte desejada!
– Como? Você desejou a morte de seu pai???
– Sim Lolico! E isso me trouxe muito sofrimento, muita tortura. Inconscientemente eu desejava sua morte, para que ele deixasse de sofrer e nos deixasse parar de sofrer por seu sofrimento! Demorei para aceitar esse fato! Não consegui chorar por sua morte e, nunca mais a morte me emocionou! É claro que meu raciocínio ( a capacidade de se estabelecer relações ente conhecimentos ) me mostrou que a morte, sendo o último evento da vida, nunca poderá ser algo que cause dor ou tristeza! É o nascimento, o primeiro evento visível da vida que ocorre com choro! A morte é um alívio. Pelo menos para quem morre! O segundo foi minha irmã Sonia, tão alegre, inteligente, competente! Sofreu muito antes de morrer! Muita dor dela e de todos que a amav am! Depois foi Dona Sinhá, minha mãe. A maior mulher que conheci!Muito inteligente, mito culta, de especial bom humor, louca por música que tanto nos ensinou desde os solfejos até a música clássica! Morreu feliz e em idade avançada! Recentemente o último tesouro que perdi, Ibrahim Octávio! Basta dizer que sempre foi o exemplo que procurei imitar sem nunca consegui-lo! Meus quatro tesouros que perdi.Perdi-os sem chorar! Mas deles guardo a saudade:o desejo de repetir!
Assim também aconteceu com Bafafá.Ou Martinha.