Lúcida vida

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Foto: Reprodução Google

Belo é vencer a própria dor. Não há nada mais profundo, mais arrebatador e mais digno. O sofrimento traz cicatrizes fundas, mas compensadoras. As lágrimas molharam o travesseiro recheado de sonhos, mas o sonho está ali, remanescente das duras batalhas.

Lúcida vida, esta que se espalha em cada canto da casa e do coração. Encontrar o caminho, em meio ao emaranhado de atalhos. Suportar algumas pancadas aqui e ali, cair e levantar-se, os sentidos a postos. Eis o segredo dos fortes, dos vencedores.

Às vezes, somos obrigados a percorrer um escuro corredor dentro da nossa alma. Conhecemos o caminho, pois já passamos por ele outras vezes, mas é preciso tatear na escuridão para atravessá-lo e chegar à luz.

Quantas vezes aprendemos de novo? Não sei. Contudo, o coração tem uma capacidade imensa de recomeçar, de se renovar e buscar saídas. Virá desta gênese contínua nossa força suprema, o revestimento do qual nos fala a Carta aos Efésios, quando a fé nos chama pelo nome.

Percorrer o caminho da noite escura é para os de espírito intrépido. A mata densa tem de ser vencida com a coragem e a inteligência. Mas, sobretudo com a fé. São muitos os portões e umbrais a serem transpostos, até que a alma se sinta em paz.

Na vastidão da noite escura, busco a sétima estrela e seu brilho incansável. Vigio o suficiente para ter em mãos um pouco das bem-aventuranças deste mundo, se é que ele ainda dispõe delas. Se há escassez, nós as cultivamos por nossa conta, como um estoque precioso, tal as belas lembranças guardadas com zelo apostólico.

Lembranças – estas sim valem a pena. Além delas, prezo a felicidade e a bonança de certos momentos. É aproveitá-los até as últimas consequências. Pode ser um maravilhoso e perfumado chá de maracujá com maçã, canela e gengibre, uma música romântica com a orquestra de Ray Conniff, um creme hidratante ao qual a pele agradece.

Aos poucos, a bruma sombria vai se dissipando e, de um postigo obscuro e triste, surge a flor radiosa da manhã. Assim como a sentinela espera pela aurora, assim é a alma à espera da luz. No espaço entre a treva e a claridade, o coração faz as suas descobertas.

Daí em diante, é território sagrado. Ninguém ouse perturbar o conhecimento adquirido nos sonhos de quem espera. Se as certezas começam a cair uma a uma, surgem dezenas de outras verdades dignas de crédito. Ainda que não se sustentem de início, vão se tornando sólidas à medida que o sofrimento dá lugar à lucidez.

Lúcida é a vida de quem conquistou a própria serenidade, vencendo a densa mata do medo e do desconhecido. Não sente solidão, sabe conviver consigo mesmo, ama o que possui e não se apega a nada mais. O cotidiano é administrado com paciência e aceitação.

A noite escura vai ficando para trás, a sensação de plena liberdade e de confiança reforça o corpo, e um sangue renovado corre pelas veias. O pior já passou. Estar de pé e caminhar tornam-se a maior das glórias. Há gosto em viver, em se arrumar e encontrar pessoas. É a redenção de todas as lutas.

Também o amor faz parte desta vitória. Sem ele, seria impossível subir ao pódio para receber a honrosa medalha do mérito. Um dia ganhamos, um dia perdemos. Mas se nossas mãos estão cheias de amor, a recompensa virá, de alguma forma.

Nem sempre estamos de bom ânimo. Alternamos nosso humor como as mudanças climáticas. Por pior seja o luto na alma, por penoso seja o que tenhamos de enfrentar, a vida continua lá fora à nossa espera. Feliz de quem vai ao encontro dela, se veste de esperança e se permite recomeçar.

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