Mentalidade empreendedora e o novo pau-brasil

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Pau Brasil

Foto: Vital Pasquale

A história do desenvolvimento econômico brasileiro é uma história de sucessivos esforços (não de todos) para o rompimento de “gargalos”, numa trajetória de “ciclos” de exploração de recursos por determinados grupos.  Um país rico, pela sua extensão territorial, pelas dádivas da natureza e pelo volume de sua população, o Brasil é um país pobre em poupança, em “capital humano” e em mentalidade empresarial, três requisitos fundamentais ao desenvolvimento nos moldes verdadeiramente capitalistas.

O pau-brasil, vieram buscar; idem, o ouro, a borracha – bastava recolher e transportar (em naus estrangeiras). Até que um dia, abandonaram o extrativismo e passaram uns mais espertos a se dedicar à lavoura. Ainda assim, para servir a outrem: açúcar e café para o mundo, escoado em ferrovias estrangeiras, úteis somente até o momento em que a indústria de caminhões (dominada por estrangeiros) impôs a rede rodoviária.

De tanta abundância, e facilidade para explorar força de trabalho, conseguiram os “empreendedores” dos “ciclos” pré-industriais guardar uns trocados para formar a poupança que, juntamente com os aportes estrangeiros, permitiram a constituição da “indústria nacional”. Claro, não sem a forte participação, também, do Estado, na formação bruta de capital fixo e, mais, nos anos 1930, na definição, a fórceps, de um arremedo de projeto nacional, sem o qual, provavelmente, ainda haveria por aqui somente uma imensa fazenda, talvez lotada de gados ou alguma commodity agrícola.

O gargalo da poupança (e, por extensão, do crédito) para financiar o investimento foi sendo resolvido assim: os trocados dos “capitalistas” locais, um fluxo de dinheiro estrangeiro remunerado como em lugar algum (com apoio de meia dúzia de banqueiros que abocanham grande parte dos recursos que intermediam), mais o que o governo consegue arrancar dos contribuintes pobres (os que sustentam a tributação no país) e não é gasto com despesas correntes, serviço da dívida pública e com corrupção. Ou seja, o gargalo é menos estreito, hoje em dia, mas ainda é um impedimento forte para o crescimento econômico, de vez em quando se apertando, por força de exigências conjunturais dos especuladores (nacionais e estrangeiros) que mandam na maior fatia da poupança.

O gargalo da força-de-trabalho foi rompido, primeiro com a escravização de índios, arredios; depois, com o fluxo sangrento de navios negreiros; finalmente, descobriu-se que era preciso encarar mão-de-obra como mercadoria: optou-se por buscar lá fora – a “festa” das imigrações, principalmente de países europeus (como Itália e Polônia) às voltas com muita pobreza. Tardiamente, forçou-se a urbanização e a industrialização, resgatando milhões de rurícolas da semi-escravidão, oferecendo-lhes direitos trabalhistas e vida precária nas periferias. Agora andam querendo voltar atrás com essas “benesses”, sem que haja campo para o retorno do imenso contingente de gente pouco preparada para os novos desafios tecnológicos da revolução industrial, sabe-se-lá se terceira ou quarta.

Com a massa salarial pequena em proporção ao tamanho da economia (baixa monetização da atividade econômica, no começo), o outro gargalo tem sido, com diferentes pesos em cada ciclo e nas sucessivas conjunturas pós-industrialização, a dimensão do mercado interno: falta poder de compra para proporcionar demanda que acompanhe o crescimento populacional e da capacidade produtiva. A concentração de renda impede que este gargalo seja eliminado; políticas sociais, que a enfrentam, mesmo bancadas basicamente com dinheiro dos próprios pobres (que sustenta a tributação, como já se disse), são rechaçadas com fúria.

Há um déficit muito grande, no país, também, de mentalidade. Um ethos do atraso formidável. Primeiro, um privatismo com ares de moderno, que não passa de patrimonialismo retocado (mesclado, não raro, com entreguismo em conluio com interesses estrangeiros), que barra o avanço da mentalidade republicana e minimamente nacionalista, no campo da política e do governo, em geral, e da política econômica e de desenvolvimento, especificamente. Segundo uma mentalidade empresarial quase-extrativista: busca-se a todo custo estabelecer um padrão de acumulação que beira o pré-capitalismo. É como se a produção industrial tivesse que ser voltada para fora (a agroindústria de exportação e a produção de semi-manufaturados, à frente), tendo que operar com alta produtividade e baixa remuneração (para evitar o que chamam de “custo Brasil”). A força de trabalho, nesse cenário, aparece como o novo pau-brasil: “Vamos devastar, vamos desbastar!”, gritam, babando, na corrida do ouro tupiniquim. “Corta direito trabalhista, acaba com a aposentadoria, para de dar peixe ao invés de ensinar a pescar!” Um gargalo, também, de sensibilidade, de compaixão, de humanidade, enfim.

Dureza é ver, no meio disso tudo, um discurso e cursos de empreendedorismo chocantemente bisonhos, inclusive nas universidades. Tentativa de empurrar meio mundo para os pequenos, precários e insignificantes negócios, na economia global das grandes plantas e da inovação acelerada, densa em capital e dependente de relações financeiras e mercantis obedientes a regras e lógicas globais, ao mesmo tempo em que se dá uma (uma não, meia) banana para a agricultura familiar!

E o gargalo cambial? E o gargalo da falta de uma indústria de tecnologias modernas (chip, novos materiais, biotecnologia), que é hoje, parecido com o gargalo estrutural das indústrias de base identificado pelo pensamento da CEPAL? E o gargalo da insuficiência de Ciência e Tecnologia (C&T) e de Pesquisa e Desenvolvimento (P_&D), que se optou por estreitar com o esculhambamento da universidade pública e o corte nos programas de pesquisa?

É mais gargalo do que fluxo para atravessá-los! Mas isso não seria tão catastrófico não fosse o estreitamento da inteligência (economistas, por exemplo, viciados em “modelos” que tomam o “mercado”, no Brasil, como se fosse o americano), que parece estar tomando conta dos indivíduos e instituições no país, como uma fratura exposta no tecido social, antepondo, na política, medíocres a incapazes, doidamente mobilizados, apenas, para acabar com a ‘corrupissão’. Será que depois disso sobra ‘paiz’? E ‘pençamento’?

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