Mulher de resguardo

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(imagem: Pexels/Pixabay)

Brazópolis é um lugar quente no Verão e frio, muito frio, no Inverno. Quando as tardes de Outono começavam a se tornar róseas e os pores do Sol, avermelhados, Dona Sinhá esfregava as mãos, num sinal inequívoco de ansiedade. Principalmente se caísse aquela chuvinha fina, mas muito molhada, o que a fazia dizer: “Essa chuva é pra frio!” E, Seu Tufir completava: “E esse ano promete!”

Por que a ânsia de Dona Sinhá pelo frio? Toda mulher gosta de Inverno por questões de moda! Homem gosta do frio para comer, beber e …! Dona Sinhá diria “Comer, beber e trepar!” Mas sua razão para gostar do frio era outra! Vaidosa, com razão, e exibicionista, era o momento para receber muitos cumprimentos, era o momento de produzir e distribuir uma de suas joias da Culinária: “Geleia de mocotó!”

Sim, mas por que aquele era o momento? Dona Sinhá não dava ponto sem nó! Sábia, para produzir sua inigualável geleia de mocotó precisava de frio, se possível, abaixo de zero centígrado! Repararam que não se diz “graus centígrados”, centígrado significa grau centesimal! Melhor, mesmo,  graus Celsius. A única geladeira, doméstica, que havia em Brazópolis estava na casa de Dr. Chiquinho, cheia de revistas velhas! Não havia uma fábrica de gelo nas redondezas.

A geleia de mocotó de Dona Sinhá era perfeita: deliciosa, consistência perfeita e absolutamente sem qualquer turbidez! Era dourada! Dava-nos uma mão de obra hercúlea, mas valia a pena. Primeiro a escolha do mocotó e das especiarias. Em casa todos trabalhavam: papai montava o filtro, virando uma cadeira da sala de jantar de pernas para cima, com o assento sobre a mesa da cozinha; amarrava um lençol, absolutamente alvo, dobrado em quatro nos quatro pés da cadeira, formando um filtro perfeito. Sobre o fundo da cadeira um grande caldeirão, abaixo do convexo do filtro.

Dona Sinhá pilotando, bravamente, o fogão à lenha, de rabo curto, a grande mágoa dela! O segredo da transparência da geleia era a retirada, total, da gordura que saía da cocção dos mocotós. À medida que a cocção se dava, flutuavam como que rodelas da gordura que derretia. Com papel de pão, comprado por mim na Padaria do Quaresma, às resmas!

Enquanto isso, Joca e eu saímos às ruas, buscando recipientes nas casas dos amigos. Esgotada a gordura do caldo de ímpar olor, passava-se a pouco e pouco, tudo pelo filtro. O líquido dourado caía no caldeirão e, dali, para recipientes grandes e, daí, para os recipientes menores. Já era noite alta quando a faina terminava. Agora bastava esperar pela geada de madrugada! Não sem antes comermos o delicioso ensopado do mocotó que ficava no filtro. Era uma festa!!! De manhãzinha, os amigos vinham buscar aquele manjar dos deuses (nós seis!).

Pois é, mas o inverno era também de desfiles! Cada um queria mostrar a sua peça, nova, para o frio. Eu ganhara de mamãe um belíssimo par de meias de lã, marrom, até o joelho. Cumpre ressaltar que o uniforme do Grupo era de calças curtas! No primeiro dia em que usei as meias novas estava muito frio! Sete da manhã sapatos, meias de lã marrons, calça azul marinho, camisa branca e um casaco de lã, que herdara de algum parente que crescera mais do que eu. Cheguei à porta do Grupo, me reunindo com a turma. Zé Aleixo, talvez com inveja das meias, me olhou e disse alto e bom som: “parece meia de mulher de resguardo!” Nunca mais usei as meias!

*Jairo Teixeira Mendes Abrahão, Professor Titular da ESALQ-USP.

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