O bom combate

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bom combate        A vida é um poema. E não fui eu que inventei isso. Vejo em toda parte uma poesia que se exibe e se expõe. O mapa da noite é um só e desenha mais que continentes e litorais. A luz do dia maravilhoso me permite ver ainda melhor. Vejo poesia nos objetos que toco pela casa, no guardanapo que enxuga a louça, nas roupas que visto, no teclado do meu computador.

Trata-se de uma poesia que permeia cada passo e cada momento, deixando gravadas suas digitais no zelo com que se reconstitui a vida em sua exata definição. Não sei definir a vida, claro, e tampouco ousaria. Contudo, a cada instante, um novo sopro vital infla-me o peito e sinto um inenarrável amor pelo que me cerca, um vivo interesse por todas as coisas criadas, cada qual cumprindo sua função no universo.

Ah, o arqueológico trabalho de escavar lembranças, buscando suas origens e razões. Nossa alma, entre gratificada e atônita, recorre ao expediente da saudade, num súbito instinto de autopreservação. Nada escapa ao trágico e belo olho da memória.

Eis que este senso primoroso faz de nós especialistas em nós mesmos. Está tudo na palma da mão, tudo aquilo que é espelho da nossa própria imagem. Narciso atualmente construído por meio de “selfies” e demais recursos que incensam e endeusam as faces em movimento.

Há força e fragilidade em todos nós. Eis o poema em toda a sua glória e plenitude. Literário ou não, ele repousa entre a luta pelo pão de cada dia e a riqueza dos que constroem Dubai, sobrevivendo à crise, no luxo do Burj Al Arab.

Na contramão do previsível, há um poema pequenino, que mais se esconde do que se mostra, porque prefere o apagamento, o anonimato e a solidão. Na nudez de toda intimidade, há o reconhecimento de nossa ambivalência e de uma latente inclinação para extremos. Então, todo cuidado é pouco.

Sidarta descobriu o chamado “caminho do meio”. Mais ou menos assim: “Se esticar demais, a corda arrebenta; se ficar frouxa, não produz som”. Desta premissa, nasceu a sabedoria do necessário equilíbrio, a mesma harmonia cósmica que rege todas as coisas, todos os planetas em suas respectivas órbitas, denso mistério para as criaturas humanas.

São tantos os prodígios de hoje. Os dedos digitam números e por eles uma voz é ouvida. Sonoro poema, lírico fonema. Quilômetros são vencidos em paz, ao toque de um teclado silencioso. Quero enumerar algumas doçuras essenciais: a textura do lençol que se acabou de trocar; o canto estridente da cigarra (elas sumiram?) anunciando o verão; um canteiro onde se plantou amor além de flores; a música de um rádio ligado; o lápis e a borracha; a bênção de um copo d´água; a caixa de fósforos e uma vela acesa com fé.

Repito: somos tão frágeis, meu Deus. Um sopro e somos levados embora para sempre. Nada nos pertence neste mundo de fugacidades. Nossas vidas são efêmeras como os sonhos noturnos, na noite de pedra em nossos olhos insones. Virá o dia que esperamos? Cada um guarda uma espera secreta no coração.

Quando estamos sozinhos em nossa casa, desejamos a paz e o silêncio necessários para o descanso merecido, onde podemos meditar, rezar, pensar. Este momento precioso nos diz alguma coisa. Que nosso corpo deve estar em sintonia com o fogo, a água, a terra e o ar. Devemos agradecer pela vida e pelo resultado de toda a nossa existência. Não estamos aqui em vão.

Esta crença faz da crônica semanal um poema de amor e de esperança. Escrever é uma vocação irreprimível e pedimos todas as licenças poéticas de plantão, para levarmos adiante este canto que não cessa. Nada pode cooptar a força do alfabeto sem que este o permita. E que toda a palavra nos conduza ao bom combate.

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