O desafio da permanência estudantil

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Foto: Divulgação

É sabido que o aumento dos custos com estudantes carentes, isto é, com o denominado Programa de Permanência Estudantil (bolsas e auxílios), tem onerado enormemente o já combalido orçamento da UNESP e, em larga medida, obrigado a universidade a desempenhar um papel para o qual ela não está minimamente preparada ou aparelhada: o de assistência social. Os efeitos de tal desvio já saltam aos olhos: perda de qualidade acadêmica (perceptível nas classificações internacionais), esvaziamento da meritocracia –– pilar mestre da instituição universitária –– e, sobretudo, a deletéria criação de uma cultura de vitimização e reclamação entre os universitários, cultura que está gradativamente aniquilando o debate intelectual e solapando a objetividade das avaliações de rendimento dos docentes e discentes.

Em reportagem recente divulgada pelo Estadão, as três universidades paulistas (UNESP, USP e UNICAMP), alheias aos problemas decorrentes do mencionado “desvio de função” mas sensíveis aos impactos da permanência sobre os seus orçamentos, lamentam a carência de meios materiais para atender à crescente demanda por esses programas destinados a alunos carentes –– cujos custos cresceram exponencialmente com a adoção das cotas –– e acenam com a possibilidade de repassarem os custos destes programas –– ou de parte deles –– para o Estado de São Paulo, o que aliviaria razoavelmente o combalido caixa das universidades paulistas, mas não colaboraria muito para atacar um problema de fundo que há muito ronda as universidades: a ineficácia dos elevados gastos com o alunato.

Lamentavelmente, em nenhum momento da reportagem, os representantes das instituições de ensino cogitam adotar medidas menos simpáticas, menos escravas da agenda politicamente correta, medidas que verdadeiramente imprimam maior racionalidade aos gastos com o alunato e, ao mesmo tempo, promovam uma valorização da vaga pública que o estudante ocupa. Há algumas providências simples –– mas antipáticas –– a serem tomadas neste sentido que certamente teriam impacto positivo sobre o orçamento e sobre a qualidade de ensino, pois, quem atua nas universidades sabe, gastamos aí muito e com eficácia diminuta.

De saída, é urgente reduzirmos o tempo despendido pelo aluno para concluir o seu curso. É ilógico permitir que um discente, cujo curso dura 48 meses, disponha de 84 meses para concluí-lo. Para além do gigantesco desperdício de dinheiro público, essa liberalidade gera uma série de efeitos colaterais, todos extremamente nocivos para a universidade. De saída, desestimula o esforço e secundariza o aprendizado. O raciocínio é simples: o aluno pouco cobrado, desprovido de hábitos de leitura e sem perspectivas no mercado de trabalho pós-universitário vai deixando-se ficar na universidade, onde recebe, independente das suas reprovações, ajuda para morar, comer e manter uma vida sem luxos, mas tranquila. Por qual razão um jovem em tal situação optaria por concluir o seu curso em 48 meses, se pode desfrutar dos benefícios citados por quase o dobro de tempo? Talvez esteja aí –– nesta conduta racional em um sistema irracional –– uma das causas centrais do alto índice de retenção que temos detectado nos cursos de licenciatura oferecidos na UNESP, e não no suposto grau elevado das exigências acadêmicas, como supõe um certo pedagogismo populista que tem sufocado as nossas graduações.

Outra anomalia decorrente da longa permanência do aluno na universidade é a produção do denominado “estudante profissional”. O que torna o caso do estudante profissional ainda mais perverso do que o do relapso é que ele usa a vaga universitária, durante o máximo de tempo possível, simplesmente para organizar “juventudes partidárias” e recrutar membros para os ditos “movimentos sociais”, isso com o dinheiro do contribuinte e, muitas vezes, com um complemento salarial do partido e ou do movimento a que pertence. O “ser aluno” transforma-se num bico, num ganha pão, e, é claro, num meio de engatar uma carreira política.

Tal personagem, muito comum nos cursos de licenciatura e nas humanidades, usa ainda de mais duas brechas do sistema universitário público para se manter no “estado de estudante”: cursa alguns anos de vários cursos, aproveitando-se do fato de que não há limite para o cidadão usar uma vaga pública na universidade, desde que passe no vestibular –– o discente pode iniciar Física, cursar 2 semestres, reentrar em História, cursar mais dois ou três semestres, mantendo-se no sistema por mais de uma década; ou faz diferentes cursos sucessivamente –– há casos, na minha unidade, de alunos que se diplomaram em 3 das 4 graduações que oferecemos. Ambas as brechas são indicativos de como a universidade gasta mal e de maneira injusta, sem qualquer compromisso com a res publica. Ora, é lógico, justo ou eficaz que o contribuinte paulista pague pela indecisão, pelo diletantismo ou pelas ambições políticas de alguns cidadãos? Porque não tapamos essas brechas, proibindo a reentrada do discente indeciso no sistema público e colocando limites àquele que quer cursar mais de um curso na universidade pública? A universidade é pública, gratuita e aberta a todos, mas não deve se tornar um modo de vida para desocupados, indecisos e oportunistas.

Uma segunda medida urgente que precisamos tomar para valorizar e otimizar a vaga pública na universidade é aumentar a cobrança sobre o discente. Em boa parte dos cursos que oferecemos, a média é ridiculamente baixa, as chances de aprovação são incontáveis e as reprovações, mesmo aquelas decorrente da não presença do aluno (reprovação por faltas) não trazem maiores consequências para o reprovado, que muitas vezes não quer mesmo sair do sistema. Ora, é justo que o aluno, usuário de um programa de permanência, reprove por não “permanecer” em sala de aula e continue a receber os seus auxílios? É plausível, para ampliarmos o raciocínio, que um aluno reprove uma, duas, onze vezes durante a sua graduação –– demonstrando que utiliza displicentemente o dinheiro do contribuinte –– e não sofra qualquer punição por isso?

Passou da hora de a universidade pública colocar limites à reprovação e punir o discente relapso, inclusive com a perda da vaga; trata-se, e as experiências de outros países demonstram, de um modo eficaz de aumentar o desempenho discente –– que terá de se dedicar um pouco mais para manter-se no sistema –– e valorizar a vaga pública. É preciso, e o momento que o país vive parece propício, parar de negar o real e aceitar que as práticas facilitadoras que adotamos ao longo das últimas décadas foram trágicas para a qualidade do ensino universitário e criaram gerações de profissionais desprovidos dos instrumentos lógicos e intelectuais mínimos para exercerem competentemente as suas profissões –– a geração do “eu sinto que”, “a minha vivência diz que”.

Trágica, igualmente, é a mentalidade que estamos produzindo quando irrigamos o sistema com bolsas e auxílios que não exigem como contrapartida nada mais do que ser carente ou ser uma vítima de algum tentáculo do tal sistema –– é a cultura do “Estado penitente”. Há pouco mais de uma década, as bolsas sociais existentes exigiam um desempenho acadêmico mínimo do usuário; de lá para cá, as exigências caíram uma atrás da outra, ao ponto de a Universidade, hoje, manter um programa que em nada se distingue do bolsa família. Os estragos que tal política vem causando já são perceptíveis: desestímulo enorme à procura por bolsas científicas (que cobram relatórios e pesquisa); banalização da ideia, entre os jovens, de que é natural depender do estado –– o patrimonialismo que tanto nos atrapalha –– e de que o estado é sempre obrigado a atender, com presteza e a fundo perdido, as suas necessidades; fomento, neste mesmo jovem, de uma aversão irracional ao trabalho regular e ao mercado; e destruição desde cedo daquilo que move as sociedades saudáveis, a vontade do indivíduo de empreender e de encontrar soluções para autonomamente manter a própria existência. Quais razões, senão a covardia, o medo do alarido dos beneficiados, justificam a não introdução de mecanismos que cobrem contrapartidas dos usuários de bolsas e auxílios? Exigências acadêmicas, sem dúvida, mas também a prestação de serviços à universidade e à comunidade, relacionados à área em que o aluno deverá atuar depois de graduado. Independente das utopias societárias alimentadas por cada um dos atores do meio universitário, é preciso constatar que, por hora, formamos indivíduos que vão atuar numa sociedade capitalista e de mercado, isto é, vão atuar numa sociedade onde “não existe almoço grátis”, e toda recompensa, salvo as decorrentes do crime ou da sorte, vem de um serviço prestado à comunidade.

As quatro medidas referidas –– redução do tempo de permanência nos cursos, estabelecimento de limites para ocupar uma vaga na universidade, aumento da cobrança acadêmica e concomitante punição (com perda de vaga) para os repetentes contumazes, sobretudo para os reprovados por faltas, e a introdução da exigência de contrapartidas (acadêmicas e não acadêmicas) para os usuários de benefícios (bolsas e auxílios) ––, ainda que não gerassem a economia de um único centavo, o que não é provável, trariam maior racionalidade e eficácia para os gastos com o alunato, gastos que, de acordo com o último relatório do Banco Mundial, são mais do que suficientes para oferecermos aos nossos jovens uma formação menos medíocre do que a que temos oferecido, e prestar à sociedade serviços melhores do que os que atualmente temos prestado. O problema de caixa não será resolvido, mas sem dúvida melhoraremos a imagem ruim que a universidade pública tem atualmente entre boa parte daqueles que pagam pela sua existência: os contribuintes do Estado de São Paulo.

*Jean Marcel Carvalho França- é professor Titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho,coordenador do grupo temático "Escritos sobre os novos mundos" e autor , entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista (Imprensa nacional – Casa da Moeda, 1999), “Visões do Rio de Janeiro Colonial” (José Olympio, 2000), “Mulheres Viajantes no Brasil” (José Olympio, 2008), “Andanças pelo Brasil colonial” (Editora da UNESP, 2009), “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII” (José Olympio/EDUNESP, 2012) e “Piratas no Brasil“ (Editora Globo, 2016).

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