O peso do tabagismo passivo
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A fazenda Montebelo, próxima a Rio das Pedras, com cerca de 300 alqueires, produzia café e cana de açúcar em regime de ameia —os agricultores trabalhavam nas terras da fazenda em troca da metade de seus rendimentos com o dono da propriedade. A família dos colonos residia nos seus domínios. A casa dos Bagatello, muito simples, sem laje e nem forro, e desprovida de água encanada, possuía dois luxos apenas: ladrilhos e energia elétrica. O ano era 1980. No calor, pai, mãe e os nove filhos tomavam banho no rio. Mas, no inverno, a mãe, Dona Hermínia, esquentava água para o banho de bacia. A meninada andava 4 quilômetros a pé, em meio ao canavial, para estudar na única escola que atendia três fazendas da região — a Fazenda Montebelo, a Fazenda Pinheiros e Fazenda Bom Jesus. O Sr. José Bagatello e os filhos mais velhos cuidavam das plantações de cana de açúcar, de arroz, de feijão e de milho, além das criações de porcos e de galinhas. O sítio vizinho possuía um alambique de aguardente, vendida em garrafões. O pai bebia todos os dias e fumava cigarros. Jelson, o sétimo na irmandade, conviveu com o tabagismo passivo do pai e dos cinco irmãos mais velhos: Antonio, José Bagatello Filho, Roberto, Ademir e Paulo. Todos consumiam cigarros dentro de casa. Quando adolescente, ia, todo fim de semana, aos bailinhos de salão nas fazendas e via a maioria dos amigos fumar — era charmoso, mas ele não gostava. Quando a família se mudou para a cidade, em Rio das Pedras, conseguiu emprego na fábrica de balas Nechar, que seria posteriormente vendida para a gigante argentina Arcor. Lá, trabalhou por quinze anos, e conhecera sua colega de trabalho, Guiomar, que viria a se tornar sua esposa. Tiveram 3 filhos: Viviane, que há um ano reside com a família na Itália; Leonardo, que mora longe também, em Fortaleza; e a caçula Júlia, a única próxima dos pais, em Rio das Pedras, onde possuem uma loja de artigos evangélicos, a Manancial. O casal de empresários estava com as férias marcadas e com as passagens compradas para a Europa quando Jelson adoecera.
Dona Hermínia, morrera cedo, aos 47 anos, vítima de bronquite, doença secundária ao tabagismo passivo. Viram também, um a um dos filhos mais velhos, tabagistas, padecerem do coração: sofreram infarto do miocárdio, realizaram cateterismo cardíaco, alguns, angioplastia coronariana e, 3 deles, a cirurgia de revascularização ou ponte de safena.
Mais de 4700 substâncias químicas tóxicas são jogadas no ar pela fumaça do cigarro. Os perigos à saúde atingem tanto os fumantes quanto os chamados fumantes passivos, que inalam uma combinação de dois tipos de fumaça: a principal, ou primária, exalada pela pessoa que está fumando, e a secundária, emitida pela ponta de um cigarro aceso. Esta, contém, em média, três vezes mais nicotina e monóxido de carbono e até 50 vezes mais substâncias cancerígenas que aquela inalada pelo fumante depois de passar pelo filtro do cigarro.
Adultos, a curto prazo, podem apresentar irritação nos olhos, tosse e sintomas de alergia respiratória. A médio e longo prazo, correm o risco de desenvolver as mesmas complicações que o fumante de fato: 30% mais chances de desenvolver câncer de pulmão; 25% mais chances de doenças cardiovasculares como o infarto; bronquite crônica e enfisema pulmonar e vários outros tipos de câncer como o de boca, de laringe e de faringe.
O Sr. José Bagatelo parara de fumar aos 54 anos. Morrera 20 anos após, de cirrose hepática, em decorrência do alcoolismo. Jelson, meu paciente desde o ano de 2007, sempre compareceu às consultas anuais, toma remédios para a pressão e faz atividade física regularmente. Gosta de correr e de pedalar. Contudo, na consulta de outubro de 2023, reclamou de fortes dores no estômago, quando realizava algum esforço, como caminhar com o cão. Estranhou quando o mal estar veio acompanhado de palidez e de sudorese fria e quando a dor se irradiou para o braço esquerdo — a clássica descrição da angina de peito. Diante da clínica exuberante e do histórico familiar, solicitei um cateterismo cardíaco: uma das artérias coronárias possuía obstrução total e o músculo cardíaco recebia irrigação por meio de vasos colaterais.
Há 15 anos o estado de São Paulo ganhava uma das leis mais revolucionárias de sua história, a Lei Antifumo (lei número 13.541/2009), pioneira em transformar a cultura do consumo de tabaco no Brasil. A lei proíbe o consumo de cigarros e de seus derivados em ambientes de uso coletivo, públicos ou privados, total ou parcialmente fechados. Depois de 5 anos, em 2014, a norma passou a vigorar em todo o território brasileiro. Propõe reduzir o risco de doenças provocadas pela exposição à fumaça do tabaco, promover a defesa do consumidor e criar ambientes de uso coletivo livres do fumo. Incluem-se, neste contexto, os dispositivos eletrônicos para fumar — pods, DEFs, vapes e cigarros eletrônicos.
Jelson, felizmente, conseguiu tratar o coração através de uma angioplastia e livrou-se da cirurgia cardíaca. Recuperado do susto, recomendei que voltasse, gradualmente, às caminhadas ao ar livre. Em outubro, viajarão à Itália. Querem ver os netos.
*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.
*Erasmo Spadotto – cartunista e chargista, criou a ilustração especialmente para este artigo.
A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.