Para matar as saudades

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Foto: Reprodução Google

Antigamente, havia noites, galos e quintais, como diria um poeta. Algumas casas tinham terraço e jardim. Era uma doçura estar ali, ao cair da tarde, para sentir o sol se pondo, o embate dos últimos raios, e assistir ao piso dourado da rua se desmanchando nos entremeios da luz.

Na casa onde nasci tinha um terraço amado, e meu pai colocou ali dois bancos de madeira, com pés de cavalos de ferro. Meu pai amava ver o movimento da rua, fazendo um cigarrinho de palha, cumprimentando os conhecidos que passavam e também paravam para um dedo de prosa.

Os dois bancos de madeira eram a delícia do terraço. Os cavalos de ferro pareciam estar numa vigorosa pose de trote e, fundidos numa ferragem artística, sustentavam as ripas de madeira. Tinham encosto, um leve torneado para acomodar as costas. Eram bonitos e muito adequados para o ambiente, cujo espaço ficava ainda mais agradável com a sombra feita pela trepadeira de florinhas cor de rosa, emoldurando os pilares e muros laterais.

Era maravilhoso chegar da escola, pegar um livro e ficar no terraço. Apreciar o movimento da rua, ver as pessoas indo e vindo, num tempo onde havia uma loja de calçados na esquina. Açougue, casa de queijos, quitanda e armazém, loja de tecidos e armarinhos, relojoaria. Tudo tão perto, tão à mão, as pessoas se encontravam nestes lugares, cumprimentavam-se, conversavam, havia uma amizade fraternal entre a vizinhança.

Era um tempo em que se andava de bonde, e também se andava muito a pé. Fiz todo o curso primário no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, a alguns quarteirões de casa. Todos os meus irmãos, primos e vizinhos estudaram no “Barão”. Nossos pais só tinham o trabalho de nos matricular, e depois íamos aos grupos, os mais velhos tomando conta dos mais novos. Descíamos a rua a pé, a escola era logo ali. Não havia carro na porta para nos levar ou buscar. Numa cidade do interior, a vida era sempre menos perigosa, mais simples, e menos atropelada, na certeza de que todos voltariam sãos e salvos para casa.

Quero guardar na alma este tempo intocável, quero gravar na retina a imagem que não se perde – olhares, gestos e expressões inesquecíveis. Procuro manter nas paredes e porta-retratos parte deste passado tão lindo e encantador. Recorro às fotografias para eternizar a memória do tempo. Gosto das fotos de noivos antigas, aquelas em que o novo casal posava com as roupas das bodas, depois do civil, oficialmente casados. A foto era enviada também para os parentes, como lembrança. Em tamanho grande, colada numa cartolina de boa espessura, protegida por uma folha de papel de seda. Aos queridos tios, dos noivos, com amor. João e Maria.

Quantos gostam de cultuar estas lembranças que, de tão imensas, já não cabem dentro do coração. E não se esgotam no retrato da parede. Há tanto sentimento e tanta felicidade nas recordações, no maço de cartas apertadas por um laço, no papel de bombom entre as páginas do livro amado, na caixinha de música onde a bailarina rodopia, no poema escrito no guardanapo de papel do bar… Há um oceano de emoção em cada fragmento de saudade.

Hoje, o retrato na parede chega a doer. Olho minha mãe, meu pai, meus amados que já partiram, e relembro os momentos partilhados com fé e esperança. Eles não voltarão, a não ser nos suspiros diários, no peito apertado, na impressão em sépia de cenas eternas. Os olhos enxergam em doce névoa um terraço sombreado de florinhas rosas, os bancos de madeira com pés de cavalos de ferro, o tempo das férias escolares, o jardim e o portão, a presença da família em toda a sua força humana. Ali está guardada, intacta, a memória do amor.

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