Para o meu pai

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Foto: Reprodução Google

Deus Pai de misericórdia: onde começa o assombro desta campina perdida no coração, quando vai anoitecendo, avançando para o cri-cri do grilo escondido pertinho das coisas que amamos?

Roça. Tenho um pé nela. Se bobear, tenho os dois. Meus pais cresceram em sítios, daqueles formosos. O sino da capela, a escolinha risonha e franca, as festas juninas. Minha mãe levava o almoço dos irmãos que trabalhavam no canavial. Sabe a casinha pequenina onde o nosso amor nasceu? Então, acho que foi a primeira casinha do meu pai e da minha mãe.

Depois que o casal se mudou para a cidade, minha mãe nunca mais quis saber de zona rural. Esconjurava quando meu pai cismava de voltar para o perfume da roça. Cheguei a vê-los discutindo. “Vai você” – resmungava minha mãe, citadina e feliz. “Sem você não vou” – retrucava meu pai, cheio de razão.

Amavam-se tanto, que graça teria um ir embora e deixar o outro na cidade? Meu pai resolveu o assunto quando se aposentou e passou a ir ao sítio algumas vezes na semana, levando uma saborosa e cheirosa marmita preparada pela minha mãe. Pronto. Ela não tinha de se mudar para a roça e ele podia usufruir do sítio o quanto queria e gostasse.

Meu pai gostava demais. O sítio do Campestre era a razão de sua vida. Era ele quem cortava a grama em torno da casa, podava as plantas roxas da cerca viva, aquelas que soltam um leite branco e causam feridas na pele. “Pai, compre luvas, por favor.” Mas ele nem ligava. Gostava de exibir estes machucados que a roça dá. Se chegava em casa com um pedaço de pano amarrado no braço, contava para minha mãe que se cortara ao consertar a cerca. Ela ficava brava. “Mas você precisa fazer esse tipo de serviço?”. Sim, ele precisava, ele não queria delegar a mais ninguém os cuidados com o sítio amado.

Entregou-se de corpo e alma àquele abençoado pedaço de chão. Como se soubesse que seria a última coisa que faria na vida. Até que, tentando podar galhos de um arbusto mais alto, sofreu uma queda da escada. E caiu justamente em cima do facão que manuseava. Mas a lâmina ficou de lado, não o feriu muito. A queda, no entanto, foi fatal. Meu pai nunca mais foi o mesmo. Precisou enfaixar as costelas e ficar de repouso.

Daí pra frente foi enfraquecendo. A cabecinha começou a dar sinais da decrepitude mesma da vida. Pegava uma almofada, cantava modas antigas, puxando o fole de uma sanfona imaginária. Uma vez, eu o coloquei no meu carro e estacionei próximo do sanfoneiro de um bailão da terceira idade que se realizava aos sábados, num galpão perto da casa dele. Foi um deleite. Meu pai enxugava as lágrimas com um lenço. A cada final de música, ele gritava: “Bravo!”. Um amigo dos velhos tempos se achegou e o convidou para participar do baile, sem saber das reais condições do meu pai. Respondeu ao amigo: “Dançar? Eu? Vê lá, belo, não convém”.

Uma prima de São Paulo, vendo o amor dele pelas músicas e a vontade de tocar um instrumento, encontrou uma linda sanfoninha, com acabamento em madrepérola verde, comprou e lhe deu de presente. Foi uma festa completa! Ele só brincava, mas era um batalhão de gente em torno do novo artista com a sanfona. Até eu arrisquei alguns acordes, num fon-fon-fon melodioso, e meu pai ficava mole de tanto rir.

Um dia, conforme conta uma de minhas irmãs, ele acordou chamando “Maria! Maria!”, estendendo as mãos e olhando fixo para um ponto no quarto. Seria Nossa Senhora, Maria Santíssima em pessoa que viera buscá-lo? Quero crer que sim. Ele que era tão mariano e devoto da mãe de Jesus.

E meu pai partiu, sereno, ao encontro dela. Saudades, pai querido. Saudades!

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