Páscoa – Aspectos Mitológicos

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Deusa-Eostre

Deusa Eostre. (imagem: reprodução Google)

A raiz mitológica da Páscoa está relacionada com a deusa da fertilidade, do amor e do renascimento Eostre (Eoste, Ostara, Ostera) da mitologia nórdica, também chamada de escandinava, viking ou germânica, sendo a ela associados símbolos de fertilidade e de renovação, tais como lebres e ovos coloridos, que até hoje são tratados como símbolos da Páscoa. As festividades a Eostre dos antigos povos nórdicos eram cultos pagãos em celebração à luz crescente da primavera, período que trazia felicidade e bênçãos à Terra, uma verdadeira ligação espiritual propiciada com a chegada da primavera, um renascimento anual.

A origem do nome Eostre, como também a deusa é chamada, é anglo-saxã, proveniente do advérbio ostar, que significa algo como “sol nascente” ou “sol que se eleva”. Seu nome e funções também apresentam relação com a deusa Eos, da mitologia grega, a divindade do amanhecer.

Todos esses significados e simbologias das mitologias envolvendo a deusa Eostre irão influenciar diretamente a Páscoa, em especial as ideias de renovação, renascimento e passagem.

O mito à volta da Deusa Eostre surge pela primeira vez nos
manuscritos de Beda, monge inglês que teria vivido no século VII
ou VIII. […] durante o mês de abril […] os anglo-saxões pagãos
celebravam seu culto a uma deusa chamada Eostre. A deusa seria
a divindade da fertilidade, da aurora e da luz, simbolizando assim
a chegada da primavera […]. Nos anos 50 do século XX foram
descobertos vestígios arqueológicos que mostram a presença de
Eostre na Inglaterra antiga, como revelou a investigação acadêmica
da Universidade de Leicester (MALTEZ, 2017).

A mitologia da deusa Eostre também está descrita nas lendas pré-cristãs dos antigos povos escandinavos através das Edas, coletâneas de textos do século XIII, encontrados na Islândia, permitindo, assim, o aprofundamento dos estudos históricos dos deuses e heróis mitológicos.

Temos uma relação linguística das palavras Easter e Ostern, Páscoa em inglês e em alemão, com as denominações das deusas Eostre e Ostara nas duas línguas, respectivamente. No alemão antigo Eostre (Ostara) significava a deusa da Aurora, divindade mitológica relacionada à primavera, à ressurreição e ao renascimento. Outra palavra importante do germânico antigo é Eosturmonath, que, em tradução livre, seria algo como Monath (mês) e Eostur (Eoste), ou seja, mês dedicado especialmente a Eostre, deusa da primavera, equivalente a abril, entrada da primavera no Hemisfério Norte, que, ainda segundo Beda, teria sido traduzido como “mês pascal”.

Os nomes Eostre e Ostara estariam, ainda, relacionados etimologicamente às palavras east e ost, leste em inglês e em alemão, respectivamente. O nascer do sol na primavera vem da direção leste, estando a divindade ligada ao “amanhecer do ano”.

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Durante a cristianização da Europa, vários cultos e festividades pagãs foram ressignificados, especialmente os relacionados às mudanças das estações, como a chegada da primavera, que expressava a alegria pelo renascer da natureza e a renovação da colheita e dos estoques de alimentos e bebidas. Até que a primeira colheita pudesse ser efetuada, as celebrações teriam que ser comedidas para que os estoques não se esgotassem. Na ressignificação cristã, temos a Quaresma, período com regras de abstinências, jejuns alimentar e sexual.

Muitos historiadores relacionam Eostre às várias formas da deusa indo-europeia Frigg, esposa do deus Odin, ou, ainda, afirmam que seu nome seria uma qualificação elogiosa, um epíteto, para representá-la em seu aspecto jovem e primaveril, ou mesmo associada à deusa fenícia Astarte e à deusa babilônica Ishtar, devido à relação com os festivais da primavera.

Várias fontes históricas, entretanto, questionam a existência da deusa Eostre, atribuindo-a a uma construção historicamente falsa e não aceitando a possibilidade da ressignificação da Páscoa cristã a partir das festividades pagãs de primavera dedicadas à deusa. De acordo com Belmaia (2016), no trabalho “Eostre a Easter: ressignificação de um culto pagão na Inglaterra medieval?”,

[…] o caso da Páscoa ainda manifesta a diferença latente entre
as palavras que nomeiam a celebração nas línguas inglesa e alemã,
Easter e Ostern, que diferem de todas as outras utilizadas em outros
países, advindas do radical pascha (uma derivação latina de Pessach),
que nomeia a Páscoa no português, como Pascua no espanhol,
Pasqua no italiano, Pâques no francês, a Páscha no grego, Paskha em
russo, ou Påske no norueguês. As palavras Easter e Ostern estariam
de fato ligadas à deusa Eostre, e o relato de Beda sobre a ressignificação do mês dedicado a essa deusa pela Páscoa cristã estaria correto?
[…] o monge foi muitas vezes acusado de invenção da relação etimológica
e, por conseguinte, invenção do culto a uma deusa que, segundo
Page (1995, p.125) nunca teria existido, criando uma “fantasia”
em torno de uma influência pagã sobre a Páscoa.

O trabalho de Belmaia (2016) apresenta quatro caminhos de estudos, descritos a seguir, para verificação da relação da deusa Eostre com a Páscoa, cujos cultos de adoração teriam sido ressignificados e incorporados à Pascoa moderna.
1.1 Correspondência entre o mês em que a Páscoa geralmente ocorria com o mês Eosturmonath, cujas festividades eram dedicadas a uma deusa chamada Eostre.
1.2 Utilizando evidências linguísticas como método de análise, foram
exploradas as relações etimológicas para entender a deusa Eostre a partir da formação de seu nome, classificação gramatical, registros de possíveis usos e palavras cognatas.
1.3 Evidências arqueológicas encontradas em Morken-Harff, distrito de Rhein-Erft-Kreis (Colônia, Alemanha), a partir de 1958.
1.4 Resoluções de ressignificação da Igreja para a Inglaterra, outorgadas pelo papa Gregório I, século VII, iniciando pelo contexto de cristianização.

[…] Gregório instruiu que todas as ocasiões de solenidades
e festas deveriam ser dedicadas aos mártires cristãos, ele não alterava
a estrutura da comemoração vigente anteriormente, “apenas”
a razão da mesma. (BELMAIA, 2016).

O que aconteceu, inicialmente na Inglaterra, e posteriormente foi estendido para toda a cristandade, sob a liderança do papa Gregório I, alcançou seus objetivos. Segundo Belmaia (2016): “[…] cristianizar a população anglo-saxã e exterminar definitivamente, não as práticas (agora ressignificadas), mas sim as antigas crenças pagãs”, conforme, provavelmente, aconteceu com as festas de primavera da deusa Eostre, ressignificada como festividade de Páscoa.

O ressentimento da velha deusa Eostre (Ostara), devido ao apagamento e ao esquecimento do seu culto pagão, e consequente enquadramento em uma festividade cristã, foram abordados no livro de Neil Gaiman (2001), e na série da Prime Vídeo, Amazon (2017), Deuses Americanos.

Com a ascensão de Jesus Cristo como símbolo de ressurreição
e o esquecimento do culto pagão na primavera, Ostara fez o
necessário para sobreviver. Aceitando a substituição do seu nome
pelo do filho do Deus cristão, a divindade manteve o culto da população
através de símbolos como ovos e coelhos de Páscoa. Tanto
no livro como na série Wednesday sabe como sabotar este
argumento e a confiança de Páscoa. O persuasivo Odin sabe que
Ostara está ressentida por ter sido trocada pelo Cristianismo
e por ter o seu culto reduzido a uma versão comercial sem
uma verdadeira ligação espiritual à renovação e primavera
(MALTEZ, 2017).

Supostamente a Igreja Católica acabou por substituir as festas pagãs da deusa Eostre (Ostara) pela Páscoa, absorvendo muitos de seus hábitos e costumes, inclusive os ovos pintados e a lebre (na verdade de lebre para coelho); mesmo assim, a deusa continua viva nas memórias da Páscoa, sendo celebrada em especial nos países no qual a primavera coincide com a data religiosa. No Brasil, a Páscoa é comemorada na passagem do verão para o outono, afastando-nos dos aspectos mitológicos das deusas e dos símbolos florais e frutais relacionados com a primavera.

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