Passeio Matinal

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plantas

Em bela manhã de sol cálido saímos a passear como sempre, o cãozinho preto (Quixote), K. e eu.

Antes que perguntem quem é K., explico que é meu alter ego. Não um qualquer, mas O Alter Ego por excelência, que abarca todos os outros.

É inapropriado dar-lhe nome mas, por hábito humano, conferi-lhe ao menos uma letra, K, tendo porém o bom senso de não me arriscar quanto ao seu sexo, tamanho ou características outras, uma vez que só lhe escuto a voz, às vezes sussurrante, às vezes bem audível, parecendo-me em certas ocasiões que K. nem seja alter ego algum, mas definitivamente outro ser com quem muito me agrada conversar diga-se, apesar deste ficar em silêncio durante considerável parte do tempo, eventualmente quando até preciso de sua opinião.

– Parla! Ordeno-lhe, como Michelangelo ordenou à estátua que terminara de esculpir. Mas K. faz o que quer, embora, para ser sincera, ajude-me bastante.

Mas, como disse, a manhã estava azul, conversava eu com os vizinhos, com conhecidos, alguns deles passeadores de cães também. Olhava as plantas viçosas dos jardins na manhã feliz! Então K. comentou:

-Isso é muito agradável, essa amabilidade, a cortesia entre vocês.  O mais importante é a sensação de perenidade nesses momentos, esquecem-se de que são mortais, de que tudo pode estar por um fio mesmo num dia assim.

K. não costuma ser sarcástico nem azedo por isso estranhei-lhe a fala, mas nada retruquei e tive mesmo de concordar com ele, até porque me pareceu apenas uma análise impessoal. Porém, “hum, hum”, o que ele disse fora “esquecem-se de que são mortais num dia assim”. Notaram também, pois não? Falou na terceira pessoa do plural. Então K. não é alter ego afinal? Talvez seja desses anjos vagabundos de meio expediente, vagabundos mas irresistíveis…

Contudo continuamos o passeio, seguindo pela Rua Ipiranga. Defronte a certo imóvel, perto de se chegar à Rua Madre Cecília, havia antes uma árvore frondosa, bela e não muito grande, da qual mutilaram as raízes de tal forma, cortaram-lhe a casca do tronco bem embaixo para que não se alimentasse mais; enfim, para matá-la.

Assassinaram-na literalmente, em troca de pagarem uma exígua multa de novecentos reais à prefeitura. Se a multa fosse de cinco, de seis mil reais, as pessoas teriam mais cuidado. Mas as plantas sofrem e agonizam em silêncio. Quem liga?

Todos os dias assisto, no passeio matinal, ao triste espetáculo da agonia da planta, de sua sede, de sua desoladora morte. Todos os dias! K. nem comenta nada. Talvez nada tenha a acrescentar. As deduções agora são minhas, pois mesmo ali alguns me sorriem e cumprimentam. Respondo. Até os simpáticos e educados que arquitetaram a mutilação dizem-me “bom dia”. Sentem-se eles, com certeza, as mais gentis, as mais justas, as mais produtivas e as melhores criaturas do mundo. Felizmente (e assim o quis a natureza) também perecíveis, frágeis e tão mortais como essa pobre árvore que aniquilaram.

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