Sobre Anjos, Voos e Despedidas

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Foto: Reprodução Google

Criada no catolicismo e tendo frequentado, em criança, o antigo Colégio Assunção (o das freiras) em Piracicaba, muito ouvia sobre o céu.

Lá, no colégio, havia procissões onde algumas de nós (mas não eu mesma), vestidas de anjos, iam à frente do andor de nossa senhora; outras jogavam pétalas de rosas na imagem. Eloah era uma das meninas das pétalas, o que também me parecia honroso. Andávamos em cortejo ao redor do pátio, que era extenso, contendo áreas arborizadas de bonito aspecto, tanto mais para meus olhos. Havia cânticos, também compenetração. Borbulhava em mim um infantil fervor místico.

Num belo dia soube que deveríamos participar de determinada festa religiosa no centro da cidade, na Catedral de Santo Antônio. Vi-me prestes a realizar meu grande sonho: o de vestir-me de anjo numa grande procissão. Roupas longas de cetim azul, tiara na cabeça com estrela ou imitação de diamante e… asas! Sim, asas brancas, abertas, estendidas, macias de se tocar, presas com elásticos às costas. Era eu muito jovem ainda para perceber corretamente que aquelas alvuras eram arrancadas de patos e marrecos e, por processos os quais não conseguiria conceber, mantidas abertas e duras após as amputações. À época era comum matarem-se aves com as mãos nos domicílios, pois congeladores grandes e supermercados havia poucos. Estripar, depenar, cozinhar eram procedimentos comuns, e as freiras não propriamente adeptas ao vegetarianismo ou à “não violência” budista; é natural. Assim, roubar asas das aves constituía-se atividade normal no lugar.

Contudo não desejo estragar o que virá depois que, afinal, é o centro da conversa. Fato é que, por comentarem tanto, pelo que disseram ou não disseram, pelo que imaginei e sonhei, ou nem imaginei, sabia-o já dos místicos hindus, estava absolutamente convicta de algumas coisas. Primeira: o Céu existia. Segunda: havia dois modos de entrarmos nele. O primeiro e mais tradicional seria após a morte, depois de uma vida de “boas obras”, de obediência a uma porção de mandamentos. Agora, o segundo modo era extraordinário. Poder-se-ia chegar ao Céu ainda em vida, com o corpo físico junto da alma, desde que nos dispuséssemos a fazê-lo. E eu me dispunha a tal empreitada! Mesmo hoje sei, com certeza, que aventureiro que se preze sempre preferirá morrer noutros mundos a morrer no seu, original. E, naquele momento, buscava eu não a morte, mas a vida eterna noutro nível ou plano.

Chegado o dia da procissão, que estava tépido, ensolarado, arrumei-me para a ida à praça central, festiva, cheia de gente. Mas acima de tudo, preparei-me para partir, para alçar voo. Deixar meus pais, irmãos, a escola e colegas dava-me tristeza, saudades. Seria difícil, mas nem por um minuto duvidei da escolha feita. Não relutei, e não me despedi. Acreditava que tivéssemos todos algum acordo tácito sobre o assunto. O fato é que minha decisão estava tomada. Iria embora, levantaria voo, cruzaria nuvens, flutuaria acima e mais acima, iria sim para um mundo distante e sem volta, para o paraíso, conquanto não soubesse como esse poderia ser. Porque o essencial, enfim, era a aventura.

Após o cortejo com orações e hinos, os sinos bimbalhavam. Aguardava eu, enlevada, o momento específico da partida; momento que, é óbvio, nunca existiu. As solenidades foram se encerrando perto do meio dia e anjos maiores que eu já tiravam as asas. Trágico! Mas essas não deveriam colar-se às nossas costas e nos fazerem voar? Se falasse eu palavrões, perguntaria: “mas que merda é essa, gente?”. Como não falava, perguntei, muito decepcionada, de outro modo à minha mãe a qual me explicou que não, eu não iria para o céu ainda. Desastre! O sapato estava incômodo e a tiara apertava-me a cabeça, percebi. Então aqui teria eu de continuar… Mas (e é este o núcleo da história) a existência daquela escolha feita determinou, e ainda determina, rumos da minha, já bem mais longa, vida. A necessidade de optar, a realidade das perdas e partidas, rupturas, despedidas, e as buscas, a resiliência o refazer-me após frustrações profundas; especialmente um desejo de vislumbrar o desconhecido marcaram meus caminhos.

Deixo-os agora com Ferreira Gullar:

“Caminhos não há
Mas os pés na grama
os inventarão

Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação

Fonte, flor em fogo,
quem é que nos espera
por detrás da noite ?

Nada vos sovino:
com a minha incerteza
vos ilumino”.

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