Tecelão das palavras

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Publicado no Jornal de Piracicaba em 15 de agosto de 2014 – Página 2 do Caderno Cultura

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Ao fitar o livro Bom Dia, intui estar diante de páginas polêmicas. Erro crucial, confesso. Julguei a obra pela capa e pelo subtítulo nela impressa, Crônicas do Autoexílio e da Prisão. O histórico do autor contribuiu para isso ou, pelo menos, o que falam dele. É citar Cecílio Elias Netto numa conversa para, na sequência, surgirem debates inflamados. Sobre ele não existe meio termo. É amor ou ódio.

Ex-proprietário de O Diário, um dos mais combativos jornais que Piracicaba conheceu, Cecílio foi mestre de uma geração de profissionais ainda militantes na imprensa. Colecionadores de histórias nostálgicas da redação à linotipo. Repórteres, fotógrafos, colunistas e diagramadores, cada um, a seu modo, exibe uma versão de Cecílio.

Ouvi o primeiro comentário sobre o jornalista na redação de A Tribuna Piracicabana. Ainda como estagiário do periódico, caiu em minhas mãos uma pauta sobre o abandono do Edifício Terenzio Galesi, hoje uma agência do banco HSBC. Evaldo Vicente, diretor do matutino, temendo possíveis gafes do aprendiz de terras mineiras, discorreu detalhes sobre a história do imóvel, antiga sede de O Diário, onde iniciara a trajetória no jornalismo.

De Evaldo veio a recomendação para a leitura das obras de Cecílio, com incontáveis elogios. Meses depois recebia na redação o romance Misere mei, Amor, lançado por Cecílio em 2004. Desvencilhei-me do embrulho e encontrei a dedicatória da professora Dinah Castilho, responsável pelo presente: “tarde chuvosa, porém aberta a inúmeras possibilidades. Não perca o foco. A exemplo do autor, lembre-se do seu maior ofício, o de escrever”.

São dez anos desde o primeiro encontro com a obra de Cecílio. Não nos conhecemos pessoalmente. Não nos foi dada a chance da prosa. Depois disso, arrisco dizer, acordei com muitos ‘Bom Dia’. Alguns nas páginas do próprio JP e boa parte no diário eletrônico A Província, por ele fundado. Suas exposições, incontáveis vezes contestadas, tornaram-me próximas de sua escrita, acompanhada também nas páginas do Correio Popular de Campinas.

Sobre o descontraído Dicionário do Dialeto Caipiracicabano, lembro de três diretores de teatro que permaneceram na cidade por uma semana. Brincavam, o tempo todo, com a expressão “arco, tarco e verva”. Ao final da estadia, adquiri três exemplares, um gesto de cordialidade aos paulistanos, uma recordação das terras piracicabanas. Saíram mais satisfeitos do que se tivessem provado pamonha, cuscuz, peixe ou cachaça.

Muitas declarações sobre Cecílio também vieram de João Herrmann, de quem fui assessor de imprensa no penúltimo mandato como deputado federal. Eles, que crianças brincaram na Usina Ester, em Cosmópolis, travaram lutas ideológicas na vida adulta. Sarrista singular, Herrmann dizia: “a história que ele conta, só ele sabe”, e divertia-se aos risos. Na sequência, o ex-prefeito disparava elogios ao primo-jornalista, discursava sobre sua importância para a democracia e, mesmo com a discordância de pensamentos, deixava evidente a admiração.

Pelas versões de terceiros, encontrei muitos Cecílios. O Cecílio que li nas páginas de Bom Dia – Crônica de Autoexílio e da Prisão não é nenhum deles e, ao mesmo tempo, é todos. É o jovem que engole o café amargo ao presenciar a súplica da prostituta por um prato de comida no restaurante. É o jornalista inquieto com a morte do rio, antes do modismo ecologia. É o cidadão preso ao próprio exílio, sem o direito de ir e vir, que desata os punhos e se reinventa com lápis, caneta, máquina de escrever ou computador. É escritor cativante, até quando versa sobre a primavera, a felicidade ou o silêncio. Tecelão das palavras, transforma em sinônimo o escrever e o viver.

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