Brava e doce gente piracicabana

*Artigo e fotos/imagens  retirados do livro “Piracicaba, a doçura da terra”, de Cecílio Elias Netto.

brava

Numa noite do final do século 20 – que os antigos chamariam de “ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo” considerando o calendário católico – numa dessas noites, repito, entrei em delírios. A impressão, ou quase temerosa certeza, foi a de que o meu corpo voava, acompanhando a alma. Ainda hoje, não consigo explicar: foi como se o meu corpo escapasse de mim e, de repente, eu fosse apenas um espírito. Voei, voei, qual borboleta, pairando sobre as coisas, mergulhando no tempo. Amanhecia quando fui deitar-me, exausto. Mas apaziguado.

Estou querendo, também neste livro, confessar exatamente isso: mergulhei num mundo de delírios, de fantasmas, palpáveis, concretos. É um dos momentos mais ricos da minha vida, como se todas as lutas anteriores tivessem sido uma árdua preparação para que eu pudesse vir a vivê-los, como estou vivendo-os. A imagem que me fica é a daqueles eremitas que, para entender alguma coisa, lutaram muito e inutilmente, encontrando respostas no deserto. Precisei de muitas batalhas e de ser ferido na carne e na alma para encontrar – com uma simplicidade que me assusta – o caminho. E este é Piracicaba, a história piracicabana, um tesouro esquecido que faz parte do patrimônio de São Paulo e do Brasil.

É uma paixão, paixão que vai crescendo como se fosse um bolo no estômago, ruminado, não digerido. A digestão dessa história se faz na alma, sinto-o.

Muitas pessoas me perguntaram porque não sonhei em ser escritor fora de Piracicaba. Admito até ter tentado. Mas não o consegui. Sempre respondi sem ainda estar convencido: “quero ser um escritor piracicabano”. Era uma explicação, não um convencimento. Em mim, havia barreiras, perplexidades. Mas, mais do que isso, um chamamento que eu não entendia, fantasmas dentro de mim. Comecei a compreender quando conheci cidades maiores, metrópoles, entre nós e no exterior. Ora, não passavam, também, de aldeias, nada mais do que aldeias, todas elas.

Foi, então, que descobri minha imensa tolice: eu estava querendo ser um escritor piracicabano, narrando coisas que mais pareciam da França dos livros e dos esnobes. As paixões de Flaubert, de Proust, os miseráveis de Victor Hugo, as belezas de Valéry e de Chateaubriand, as paisagens de Monet e de Manet – tudo isso estava aqui, de nosso jeito, em nossa terra. Mais ainda: há um rio, o rio Piracicaba, que está para os piracicabanos como o Sena para os parisienses. Por que não? Eis aí: eu estava aculturado, amando minhas raízes e fugindo delas.

Pois bem. Vivo de meus delírios, tenho que aceitar essa realidade tormentosa. Minha sorte, repito, foi ter encontrado companheiros que me entendem, mais do que, talvez, eu me entenda a mim mesmo. Isso foi balsâmico, decisivo. Passei a conviver com os fantasmas, a aceitá-los. E, a pouco e pouco, chegou-me a grande pretensão, talvez o maior de todos os desafios: escrever narrativas dessa nossa fascinante história caipiracicabana, a saga deste nosso povo, a humanidade de nossa gente, as paixões, os amores, as lutas, as realizações. Quase caí de joelhos, quando me dei conta de uma realidade que eu não havia percebido: nascido em 1940, vivi 60% do Século 20, e mais quase vinte do 21. E eu os vivi em Piracicaba, vivo-os ainda. Que audácia quase irresponsável, querer narrar esse universo! Que desafio!

Sei disso. Mas as coisas estão acontecendo, os fantasmas parecem estar ajudando-me. Estas lembranças são mais um passo, esforço de memória, de pesquisa e, acima de tudo, de coordenação do pensamento diante dos vultos e personalidades que conheci de maneira tão privilegiada. Muitos deles voejam-me no pensamento: Arquimedes Dutra, João Dutra, Benedito Dutra Teixeira, Antônio Pacheco Ferraz, Thales de Andrade, Alceu Maynard de Araújo, João Chiarini, Mário Neme, Marcelino Ritter, Carlos e Melita Brasiliense, Branca de Azevedo, Branca Sachs, Carlos Sachs, Alberto Vollet Sachs, Luiz e Bertico Thomazzi, Braulio, Roberto e Cacilda Azevedo, Acary Mendes, Eugênio Losso, Fortunato Losso Neto, Silvio de Aguiar Souza, Lineu Krähenbüll, os bispos Dom Ernesto de Paula, Dom Aníger Melilo, Dom Eduardo Koaik, Dom Moacir Vitti, Monsenhor Rosa, Monsenhor Jamil e Padre Paixão, Neguito, Estefânia, Romeu Italo Rípoli, Líbero Rípoli, Ruth da Zona, Luiz Dias Gonzaga, Samuel de Castro Neves, Luciano Guidotti, Salvador de Toledo Pizza, Cássio Padovani, Ricardo Ferraz de Arruda, Antônio Romano, Mário Dedini, Leopoldo Dedini, Lino e Hélio Morganti, Narcisa Ometto, Gerolamo Ometto, Rubinho e Celsinho Silveira Mello, Antoninho Faraht, Felisberto Monteiro, Humberto D’Abronzo, Jorge Vargas, João Vendemiatti, Geraldo Bastos, Ditinha Penezzi, Francisco Coelho (Coelhinho), Antônio Messias Galdino, Gustavo Jacques Dias Alvim, Evaldo Vicente – tantos que, no correr desta escrevinhação, não os alcança a memória.

Meu Deus! Quantos e quantos que fizeram e ainda fazem a história desta Cidade, um mosaico de personalidades múltiplas, variadas. E os que, também, me revolvem as lembranças, bendito seja Deus: Salgot Castillon, Doutor Cera (Antonio Cera Sobrinho), Eugênio e Ermelindo Nardim, Domingos e Nicinha Aldrovandi, Ernst e Cidinha Mahle, João Chaddad, Walter Naime, Sebastião Ferraz, Francisco Caldeira, Guilherme e Lino Vitti, Marly Perecin, Elias Boaventura, Almir de Souza Maia, Benedito Cotrim, Jaime Caldeira, Maria Figueiredo, Nize Krähenbüll, Hélio Krähenbühl, Noedy Krähenbühl, Haldumont (Tiquinho) Ferraz, Nélio e João Ferraz de Arruda, Madre Cecília, Plínio Bortoletto, Lodovico Trevizan, Renato Wagner, Edmar Kiehl, Eurípedes Malavolta, Salim Simão, Dovílio Ometto, Jairo Ribeiro de Mattos, Tuco Amalfi, Clemência Pizzigatti, Edson Rontani, Joca Adâmoli, Álvaro Paulo Sêga, Manoel Rodrigues Lourenço, Araken Martins, Neguinho Martini, Jaime Pereira, Gatão, De Sordi, Wlamir, Pecente, Mazolla (Altafini), Coutinho, Chicão, Magic Paula, Maria Helena, Heleninha, Ruth, Lydia de Rezende, sindicalistas, professores, deputados, médicos, advogados, operários, prefeitos – tantos e tantos homens e mulheres de outra geração e da minha. E os que nos antecederam em séculos anteriores? São vivos e mortos, comungando uma história, todos em mim. Muitos deles neste livro registrados. Poupem-me dos que não citei: eles foram apenas aparecendo, ao longo da escrevinhação. Não os procurei. Surgiram naturalmente.

Mergulhei nisso. O espírito de Piracicaba me invade por inteiro. A paixão por esta cidade cresce. Deixo-me levar. É a aventura do mistério, o desafio que me embriaga como se fosse um destino ou um castigo: ser escritor em Piracicaba. Que os deuses continuem em meu auxílio.

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