A terra
*Artigo e fotos/imagens retirados do livro “Piracicaba, a doçura da Terra”, de Cecílio Elias Netto.
Em 1958, o filme ‘Big Country’ – dirigido por Bill Wyller – emocionou o público mundial pela síntese, que fez da luta de um povo, o estadunidense, para construir uma nação. Creio possa, ainda em nossa época, ser um estímulo a reflexões. Pois estamos vivendo uma crise mundial de tal forma aguda que muitos pensadores já falam em “pós-humanidade”. E relembram, também, da “nostalgia do humano”.
Se, realmente, o homem nasce da terra, é ele, a própria terra. Ao nascer e ao morrer: “Tu és pó e, ao pó, voltarás”. Antes de ser uma tragédia, trata-se de aventura, a humana aventura de viver.
A etimologia da palavra humano remete ao “humus”, a terra. Foi esse, mitologicamente, o nome dado ao primeiro homem: Adão, “adam”, argamassa, barro. Isso significa não nascer pronto, mas forjar-se, ser forjado, ir-se forjando, amalgamado, construindo-se e construído – ora pelas mãos de um artista, ora pelas de um tirano. E por si mesmo. Aristóteles deixou-nos como descoberta e revelação: “O ser humano tende à perfeição”.
Nos livros anteriores da trilogia, este escrevinhador apaixonado revelou os mistérios dos deuses que – após a criatura humana ter perdido o Paraíso – encontraram a possibilidade de um recomeço. Ou retorno. Foi quando o olhar divino voltou-se para o nosso pedaço de chão, Piracicaba, e falou: “É o novo Éden”. E, ainda outra vez, dependendo de novos Adãos e Evas, artífices de um novo mundo. Em atropelos, em discórdias, em combates, mas em esperanças, o “homo piracicabanus” foi-se construindo. E aprendendo a cultivar e cultuar a terra abençoada.
O título deste livro foi intencional: “A doçura da terra”. Para, pelo menos, podermos refletir sobre o sentido das coisas, sobre privilégios e responsabilidades que, há 250 anos, nos chamam a criar, a fecundar, a ser dignos do que nos foi dado. Pois, a palavra “humanae” – que se refere à criatura humana – significa, também, no latim antigo, docilidade, mansidão, benevolência, bondade. Ideal ou sonho utópico, eis ao que fomos convidados a nos tornar a partir da palavra “humanae”: cultos, civilizados, afetuosos, amáveis, benevolentes e, em suma – e pela voz de Cícero – humanitários. Num espaço, num lugar, em cada era. O “homo piracicabanus” vive no solo fértil que produziu riquezas e pessoas sob todas as circunstâncias. A sua terra. A nossa. E apesar de tantos que nada entenderam…
O impressionante – pelo menos para este autor – é saber que nossas origens humanas foram das mais caóticas. Pois o lugarejo – indefeso, pequenino – instalado às margens dos rios, era povoado por sertanejos liderados por Manoel Correa Arzão, descendentes de desbravadores do sertão. Há uma carta de Arzão, ao Conde de Sarzedas – datada de 28 de março de 1733 – em que ele acolhe o pedido de participar para fazer guerra aos índios Paiaguá e Caiapó. Era, ainda, a saga do ouro de Cuiabá. E Arzão leva, de seu pequeno povoado, sertanejos e posseiros para engrossar as fileiras saídas de Itu.
No entanto – e mais impressionante ainda – há documento histórico revelando que, desde 15 de novembro de 1693 – pouco depois da descoberta de minas de ouro em Cuiabá – concedeu-se a primeira sesmaria em Piracicaba. Atendera-se à solicitação de Pedro Moraes Cavalcanti que pretendia uma área abrangendo “uma e outra banda o rio, ficando-lhe o salto no meio”. Nesse lugar mágico de Piracicaba, Cavalcanti queria “povoá-la com toda a sua família”. Foram tempos heroicos, quando apenas fugitivos e perseguidos arriscavam-se – sem outra alternativa – a viver isolados no sertão desconhecido. A história é empolgante, com lutas, sacrifícios que se avolumaram a partir de 1723, com a sesmaria concedida a Felipe Cardoso, até a chegada de Antônio Corrêa Barbosa que, oficialmente, fundou a povoação em 1º de agosto de 1767.
Na realidade, Piracicaba, muito antes, mostrara-se alvo dos conquistadores paulistas. Se, anteriormente, eles tinham vivido a grande e fracassada ilusão do ouro, esmeraldas e diamantes de Cuiabá, deixaram seduzir-se pela nova e real descoberta de São Paulo: a fertilidade da terra, a agricultura. Antônio Corrêa Barbosa registrou que, mudando o lugar inicial da povoação, o fez por sentir-se “atraído pelo seu terreno alegre, fértil, cheio de salsaparrilha, excelente para todo o gênero de cultura e onde se achavam estabelecidos – com ranchos e roçados, hortas e pomares – numerosos pescadores e sertanejos”. E pela caça, essa que é a primeira e verdadeira profissão do ser humano, antes mesmo da prostituição. Nessa aventura de viver, o homem caçava, a mulher plantava. E, em seguida, o homem assava e a mulher, cozinhava.
Foram dezenas de anos de anos de lutas, conflitos, disputas ferozes, enfrentamento a índios hostis e a animais selvagens. Certamente, nossos ancestrais não se deram conta de aquele paraíso estar sob os cuidados da Ceres romana, da Deméter grega, divindades da terra cultivada. Os primeiros piracicabanos foram irremediavelmente conquistados pela doçura da terra, esta terra, a nossa, da qual também nascem os homens. Essa doçura – uma conquista após tantas lutas – encontra sua inspiração exatamente no destino de todo ser humano. Pois a palavra “humanae” – ainda insistindo – tem esse significado: mansamente, docemente.