Madrugada de chuva parida

Espero, algum dia, entender seja possível corpo e razão deteriorarem-se sem, no entanto, essa toda corrupção comprometer a alma. Se a matéria humana é corruptível, o homem somente pode sobreviver na integridade de sua própria alma. Nela, está o sagrado da vida, o fulcro que não pode ser atingido por outra pessoa ou pelos acontecimentos, pois seria violação, estupro. Sinto, neste fim de caminhada, ter conseguido impedir me estuprassem a alma, ainda que a custo de cicatrizes e feridas. O sonho salva.

Até meus filhos, já adultos e amadurecidos dizem estranhar a minha ainda capacidade de sonhar. E sou eu, por outro lado, que estranho a estranheza deles e de outros. Se não for o sonho, o que resta do homem? O pintor, ao pintar, dá forma e cor ao sonho. O músico, o poeta, o escritor, o escultor, todos damos apenas forma e som e ritmo e harmonia ao sonho sonhado, que nada mais é senão aquele do paraíso perdido. O mundo construído pelo poder pertence apenas aos donos do poder. O mundo do homem é sua caverna. De onde enxerga o infinito, participando dele.

O homem está no seu exílio. Se não sonhar, será apenas um desterrado, no lugar nenhum, sem ter onde para ir. Mas acredito no espaço do retorno, mesmo não sabendo dizer qual seja. Seria cruel não houvesse. Nem que seja a terra, o pó, o chão, o retorno à própria terra, ao húmus, ao barro que o mito milenar revelou ter sido nossa origem. Confesso ser, também, o que me fascina e atordoa: compreender que humano surge do húmus. E que húmus é nome da terra, do solo, do chão, do barro. É, portanto, simples: humano, sou húmus. Logo, sou barro.

Na verdade, continua escrito nas estrelas. Basta um olhar humilde para o alto. Sem precisar de telescópios ou de binóculos possantes. Apenas um olhar. E ver miríades delas, estrelas sem conto, constelações sem fim, pisca-piscas infinitos, de durações que parecem eternas, à distância do que chamamos de anos-luz, milhares, milhões de anos-luz. Mas estão ao alcance de meu olhar. Então, ergo os olhos e vejo brilhos surgidos das vísceras, do ventre do infinito. Ouço, daí, o cientista explicar: “Houve a explosão inicial, o Big Bang.” E entendo: sou húmus, pó da terra, mas, também, poeira de estrelas.

Escrevo sob estrelas. E ao frescor da madrugada da chuva parida. Vi e ouvi dores e gemidos do parto, suores e lágrimas, o sofrimento do milagre e do mistério, a luta do parir-se para nascer. Eram e foram trovões, relâmpagos, ventos. E, depois, o despencar de tudo, a fúria dos deuses recusando-se a permitir o batismo de água, nesses tempos de tantos batismos de sangue. Mas a chuva caiu. E entendi muito mais do que o milagre milenar e sagrado de mulher virgem dar à luz um filho. Pois entendi a maravilha de, gerando-se a si mesma, a chuva nascer do ventre do infinito, rasgando úteros egoístas, rompendo bolsas pretensamente herméticas. A chuva não é concessão dos céus e dos deuses, graças cedidas e concedidas: é paixão de si mesma pelas coisas vivas, incluindo as humanas.

E a água do milagre escorreu pelo chão, foi bebida pela terra, fecundou a grama, serpeou pedras e pedriscos, deslizou por tijolos, golfejou, gorgolhou. E, como se dormisse de cansaço ou saboreasse a alegria de nascer, a chuva parida e nascida se transfigurou em simples gotas, gotículas graciosas, pingos, chuviscos maliciosos, vívidos. E – serenamente goteando, gotejando, pingando – pendurou-se nas folhas das árvores, nas pétalas das flores. E, serenamente, a chuva, – que choveu e que se chovera – tornou-se chuvisco, chuvinhando, destilando, peneirando, numa cantiga de ninar para ninar-se a si mesma. Então, ensopado dela, fui dormir. Bom dia.

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