Felipe Cardoso, o visionário

Esta Terra é mel para todos os seres. E todos os seres são mel para esta Terra. (Upanishads)

Lua_foto-Marcelo-F-Elias

(foto: Marcelo Fuzeti Elias)

Referi-me, anteriormente, a assembleia de homens. Estou certo, porém, de deuses brancos, indígenas e pretos terem-se congregado, também, nesse solo abençoado. E cada qual gerou maravilhas. Tupã e Jaci, a deusa da Lua, fecundaram a terra, tornando-a fértil e perfumada. Os deuses pretos, orixás, mil deles, cuidaram do solo, das águas, dos seres vivos, invocados pela religião africana ioruba: Xangô e Iemanjá; Okô, da agricultura e colheita; Oxóssi, da caça e dos caçadores; o Oxum da beleza, do amor, da fertilidade; Ogum, do trabalho e das técnicas. E Exu das encruzilhadas.

Os padres católicos – como católicos se diziam os governantes – não conseguiram anular toda essa deidade afro-indígena. Mas trouxeram os seus santos, cada qual também dedicado às aflições humanas, como Santo Antônio, Santa Maria do Rosário, dos Prazeres, das Dores; São Francisco, que deu as mãos aos demais deuses para proteger toda a natureza. Nesse sincretismo secular, a “Pirasicaba”, de Frei Sebastião dos Anjos, fecundou-se de sonhos, de esperanças, de amor às belezas, à espiritualidade. Tornamo-nos um povo visionário, no sentido de ser movido por ideais originais, diferentes, tão dignos e nobres que pareceram quiméricos.

Felipe Cardoso* foi um deles. Falava-se que ele era padre, quando padres tinham família, mulher e filhos. Ele foi, talvez, o primeiro grande visionário do arraial. Antes de qualquer outro homem branco conhecido, Cardoso anteviu o que havia de generoso e frutífero na bela terra à margem do rio. Minha avó Jandira contava que ele chegou quando aqui, Piracicaba, era sertão virgem, desabitado, pouco conhecido. Era muito moço, sem história revelada, sertanista que dizia ter feito, às suas expensas, o caminho por terra de Itu a Piracicaba. Muitas explicações foram dadas à sua grande aventura, inclusive a de que ele, Felipe Cardoso, seria um criminoso em busca de refúgio, temendo ser preso e sofrer represálias.

Como por aqui, onde me encontro, não mais existe noção de tempo, só posso contar aquilo que vi e que, depois, ouvi. Direi mais do passado e do presente de vocês, pois, nestas nuvens, não há expectativa de futuro. Logo, não me perguntem o que haverá de vir. Sei, apenas, do que veio e do que tem chegado. O próprio Mário Neme – grande historiador nosso, e falo de nós por nunca ter deixado de ser caipira – formulou românticas fantasias a respeito de Felipe Cardoso. Supôs, até mesmo, uma história de amor fracassado de Ângelo, irmão de Felipe. Nem aqui – na minha tribo espiritual – há entendimento sobre isso. Mas todos concordam: Felipe Cardoso foi o primeiro colonizador de Piracicaba. E só um que outro caipiracicabano, neste tempo todo, lembra-se dele.

* Felipe Cardoso – Foi um dos primeiros sesmeiros em Piracicaba e, apesar de pouco se saber de sua vida, foi reconhecido, por nossos principais historiadores, como o pioneiro na colonização piracicabana.

Estes conteúdo e imagem foram retirados do livro “250 Anos de Caipiracicabanidade”, de Cecílio Elias Netto, em co-autoria com Arnaldo Branco Filho e Marcelo Fuzeti Elias. Saiba mais sobre esta e outras obras publicadas pelo ICEN.

Deixe uma resposta