Música: nossa doce maneira de amar

*Artigo e fotos/imagens  retirados do livro “Piracicaba, a doçura da terra”, de Cecílio Elias Netto.

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Nossa terra, desde os primórdios, embalou-se pelo divino da música. Florestas e ventos sussurravam, águas murmuravam, índios cantavam, negros oravam melodicamente, mil pássaros, aos céus, entoavam cantos de deslumbres e agradecimento. E continuam a sussurrar, a murmurar, a cantar, a orar. A natureza toda, aqui, expira. E o piracicabano inspira. Essa bênção especial transformou-nos em músicos, poetas, compositores, cantores, pintores, uma permanente orquestra humana.

Fomos e temos sido bafejados pelas nove divindades pagãs, as Deusas da Arte: Clio, Urânia, Tália, Terpsícore, Melpómene, Érato, Polímnia, Calíope. E Euterpe, a alegre, suave, agradável, doce Euterpe – deusa da música, da alegria, do prazer. Ela ainda paira sobre nós – ao lado de Santa Cecília, seu nome cristão.

Piracicaba vive a cultura da Música, essa nossa doce maneira de amar. Do cururu, aos clássicos – passando pela melódica nossa criação caipira e sertaneja, por canções de ninar, por serestas, valsas e valsinhas – há a musicalidade caipiracicabana que se espalha pelo Brasil. E pelo mundo, já que os ventos carregam-na semeando a doçura dos sons, por que não?

A música, na origem da alma piracicabana

Piracicaba, terra musical – eis um dos justos envaidecimentos de nossa cidade, desde o século passado. A influência dos protestantes no Colégio Piracicabano, e dos colonos suíços e alemães, requintou esse gosto musical. Para se ter ideia desse desenvolvimento da musicalidade piracicabana, há alguns registros reveladores: no ano de 1890, 80 pessoas já recebiam educação musical em Piracicaba; em 1910, esse número subia para 500. Nesse mesmo ano, tinham sido realizados 60 concertos nas casas de espetáculo piracicabanas. Em 1891, havia 50 pianos na cidade; esse número subiu para 110 no ano de 1900.

Não se poderá, porém, jamais deixar de levar em conta que o lendário Miguelzinho (Miguel Archanjo Benício de Assumpção Dutra) deixou um álbum de composições musicais de sua autoria, ainda na metade do Século XIX.

Primórdios

Uma das principais fontes históricas de Piracicaba – com referências importantes e curiosas a respeito do século 19 – é o “Almanak de Piracicaba para o Anno de 1900”, de autoria de Manoel de Arruda Camargo (V. informações em Almanaque 2000 – Memorial de Piracicaba Século XX, deste autor). Em tal obra, temos notas preciosas sobre a musicalidade de nossa terra, essa alma encantada e encantadora.

Alguns deles: em 23 janeiro de 1871 foi colocada a primeira pedra do teatro Santo Estevam, no mesmo lugar onde existia teatro anterior. O “theatro” – derrubado em 1953 – foi palco, desde a sua inauguração, de récitas e recitais, de apresentação de orquestras e conjuntos musicais. Em 1876, no primeiro dia do ano, é instalado o gabinete de leitura, onde haveria palestras e apresentações individuais de musicistas. Em 1833, no dia 1º de janeiro, a Sociedade Musical Euterpe faz sua estreia na Matriz de Santo Antônio (atual Catedral). Em 1866 (dia 6 de janeiro, “Dia dos Reis Magos”) é inaugurado o Club Piracicaba – que se tornaria o Clube Coronel Barbosa, nome de seu fundador – com apresentações musicais e baile carnavalesco). Em março de 1864 (dia 31) chega, da Europa, o instrumental da orquestra Philarmonica, que iria adquirir prestígio estadual.

Bandas de música, desde o século 19

As bandas existiam desde o século 19, a primeira delas – de que se tem notícia – ainda no longínquo ano de 1868. O saudoso Leandro Guerrini pesquisou o surgimento das corporações musicais de Piracicaba. São deles os registros que seguem, de algumas delas:

4 de janeiro de 1868 – Primeiro registro de uma banda de música, que tocou na Câmara Municipal quando da entrega de carta de naturalização requerida pelo padre italiano José Serafim de Riggillo, que era vigário da freguesia de Santa Bárbara;

1º de julho de 1874 – Na inauguração dos trabalhos de construção da fábrica de tecidos de Luiz Vicente de Souza Queiroz – quando Piracicaba ainda se chamava Constituição – “a banda de música piracicabana” abrilhantou o acontecimento;

6 de junho de 1822 – Durante uma missa na Matriz de Santo Antônio, há o registro de uma banda de música “composta por crianças e regida por Antônio Gomes Escobar”, tocando na igreja;

20 de janeiro de 1884 – Uma notícia importante: tinha-se reorganizado a Corporação Musical Azarias de Melo, orientada pelo maestro Luiz Dutra. Significava, pois, que a banda já existira anteriormente. E, no dia 20 de março do mesmo ano, a banda Artistas e Operários tocava, em homenagem ao retorno, a Piracicaba, do político Manoel de Morais Barros.

Maviosa Banda de Meninos

Não há como duvidar. Pois os frutos são óbvios demais. As musas, aqui, em Piracicaba, fizeram, mesmo, a sua generosa morada. E a doçura delas fez germinar poesia e musicalidade até mesmo nas crianças. Está registrado na então poderosa “Gazeta de Piracicaba”, republicana até a medula, na edição de 1º de agosto de 1892, aniversário da cidade. A apresentação foi no Mirante. Era a Banda de Música de Meninos, dirigida pelo professor Antônio Gomes de Escobar, um respeitado regente mulato. O grupo era formado por cerca de 15 meninos, na faixa dos 12 anos. Todas as crianças dedicavam-se a instrumentos de sopro. Segundo o historiador João Chiarini, em trabalhos que destacam os grupos musicais piracicabanos, a Banda não foi estimulada e ficou obscura.

Orfeão Piracicabano, obra de Fabiano Lozano

O Orfeão Piracicabano foi, no passado, um dos orgulhos da cidade, com recitais que correram todo o Estado de São Paulo. Criação do maestro Fabiano Lozano, o Orfeão reunia a nata da sociedade piracicabana, sendo responsável pelo surgimento de muitos talentos artísticos. Foi o primeiro a ser formado no Estado de São Paulo, tornando-se exemplo e modelo para os que vieram depois. Fabiano Lozano, ainda hoje, é reverenciado por sua grande obra, que teve o apoio, também, do maestro Benedito Dutra Teixeira.

Orquestra Sinfônica de Piracicaba

Como que inspirada por corais de anjos, a Orquestra Sinfônica de Piracicaba foi fundada em 24 de março de 1900 pelo maestro Lázaro Lozano (1871-1951). Sua estreia – como bem merece o divino – aconteceu na Matriz de Santo Antônio.

Sua história é marcada por diversas denominações, entre as quais Orchestra Piracicabana, Orquestra Piracicabana de Amadores, Orquestra de Amadores Benedito Dutra Teixeira e Orchestra do Teatro-Cinema de Piracicaba. Ao longo dos anos, contribuíram com seu crescimento nomes como Erotides de Campos, Alcides Guidetti Zagatto, Reginaldo Rizzi, Rodolfo Rizzi, Germano Benencase e Jaime Rocha de Almeida.

Após um período de ostracismo, ela ressurge em 1994, com o nome de origem, Orquestra Sinfônica de Piracicaba, sob a direção de Hélio Manfrinatto, Olênio Veiga e Egildo Pereira Rizzi, que atuou como seu regente de 1996 a 2012. De 2013 a meados de 2014, a OSP esteve sob a direção de André Micheletti, por indicação do próprio maestro Rizzi, seu antigo professor.

O maestro Jamil Maluf, piracicabano que atuou como diretor artístico do Theatro Municipal de São Paulo e criou a Orquestra Experimental de Repertório, torna-se diretor artístico e regente titular da OSP em julho de 2014, com Micheletti como regente assistente e diretor artístico associado.

A partir de 2015, ambos são responsáveis por um trabalho de reestruturação completa da OSP, que inclui processo seletivo para admissão de instrumentistas profissionais e estagiários, coroando assim uma nova fase da Orquestra.

Escola de Música: uma história de amor

A Escola de Música de Piracicaba (EMPEM) – desde 1988, sob a responsabilidade da UNIMEP – foi rebatizada com o nome de seu fundador, criador, mantenedor ao longo de mais de 60 anos: Escola de Música Ernst Mahle, fundada em 1953. É uma escola que exala sentimentos, emoções, beleza, arte, sons por assim dizer divinos. Se Piracicaba sempre foi musical, a Escola Ernst Mahle nos enriqueceu de tal maneira que a cidade e a instituição são, hoje, mundialmente conhecidas como berço e ninho da música. Mais ainda: a Escola de Música é uma história de amor, belíssima e difícil de ser narrada, a não ser em romances e poemas dos grandes clássicos. Chateaubriand, Verlaine, Fernando Pessoa?

Não nos cabe aqui – por faltar-me o estro inspirador – narrá-la. Ernst Mahle, um jovem alemão – da poderosa família Mahle – e família exilaram-se primeiramente na Áustria, depois no Brasil. A II Guerra Mundial e Hitler ameaçavam-lhes destruir as vidas. O jovem Ernst inscreveu-se na Pró-Arte, em São Paulo, onde pontificava o maestro H. J. Koelreutter. E lá conheceu uma mocinha caipira de Piracicaba, Maria Aparecida R. Rodrigues Pinto (Cidinha), que fora aluna da brilhantíssima e lendária professora Maria Dirce Rodrigues de Almeida Camargo.

Ambos os jovens foram unidos pela música. E viram-se, um dia, tocando Mozart “a quatro mãos”. Mahle ofereceu à moça piracicabana – algum tempo depois e, tímido, sem nada falar – uma partitura de Mozart em que escreve: “Para Cidinha, com as melhores esperanças num futuro a quatro mãos”. Casaram-se, enfrentando preconceitos religiosos, ranços ainda da guerra, formaram numerosa família e construíram, “a quatro mãos”, a Escola de Música de Piracicaba. Mahle investiu grande parte de sua fortuna naquele sonho, com apoio e dedicação integrais de Cidinha. E o sonho se tornou um monumental patrimônio cultural de Piracicaba e do Brasil. O casal Ernst (Cidinha) Mahle, por sua grandiosa obra, tornaram-se verdadeiros ícones de Piracicaba.

Musas sempre vivas

Não é o tempo que passa, mas nós que, por ele, passamos. (Pensar assim fica mais fácil, pois conciliamos espaço e tempo). As Musas – cada vez mais pródigas – continuam sempre vivas nas terras caipiracicabanas, no tempo e no espaço. De geração em geração, o suave sopro delas afaga a juventude seduzida também pela música. Assim, sons de flautas, de violinos, de pianos, de oboés, de violoncelos, de violas e violões, de cuícas e de guitarras, sons da alma humana em harmônicos corais – toda uma encantadora polifonia mistura-se ao fulgor policromático de nossa natureza. Nosso hinocanção revela esse privilégio: “cheia de flores, cheia de encantos”.

Vivas e generosas, as Musas inspiraram o surgimento de grupos, instituições, sociedades que, como numa profissão de fé, cultivavam e cultivam a música, a arte que consegue o amálgama entre o divino e o humano. A Noiva da Colina – ao desnudar-se de seu véu para nosso deslumbre – tem sido cortejada pelas orquestras Filarmônica Jovem, Acadêmica Jovens Músicos, pelo Ensemble de Metais Jovens Músicos e por um ousado e realizador Projeto Jovens Músicos. A juventude reverencia, musicalmente, esta terra.

Mas e a viola, o símbolo adorável de nossa cultura caipiracicabana? Temos, por ela, um cultivo especial, pois ninguém, mais do que o caipiracicabano, sabe dedilhar as cordas de uma viola, fazendo-as sorrir, gemer, chorar, amar. Cada um de nós, na solidão ou na alegria, canta para si mesmo: “Minha viola, minha viola”. E, já há alguns anos, a nossa viola é docemente cantada pela Orquestra Piracicabana de Viola Caipira, com cerca de 30 violeiros – todos cá, da boa terrinha – e por “As Piracicabanas”, orquestra feminina de viola caipira, que emocionam com seus cantos d´alma, cantos de nossa raiz.

E os corais, nossos maviosos corais? Eles cantam em nome da população, de nossa história, das tradições caipiracicabanas. Parecem nortear-se pela sabedoria do pensador judeu, Robert M.Seltzer, que ensina: “Tradição é um fluxo de elemento recebidos de gerações anteriores, assimilados e passados adiante, adaptados e combinados com elementos de outras culturas”. A verdadeira tradição é sempre filtrada e, por isso mesmo, reformada, de tempos em tempos, conforme novas perspectivas e realidades. Em síntese: tradição é identidade. E é o que faz, de Piracicaba, uma cidade e um povo diferenciados.

A Caterpillar mantém um já consagrado coral com cerca de 50 vozes, de seus funcionários e familiares deles, todos de Piracicaba. A ACIPI, o Oratório São Mário, escolas, faculdades, igrejas, bairros têm conjuntos vocais que encantam nossa gente. Se os anjos cantam lá, nossos corais cantam cá.

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Orquestra Lozano e bandas musicais marcaram época na cidade, enquanto as orquestras Sinfônica e de Moda de Viola e Coral Vozes Caterpillar continuam enriquecendo a rica história musical de Piracicaba

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Fotos: Acervo Cecílio Elias Netto e divulgação

 

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