A mulher e a evolução

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Filme A Forma da Água

Foto: Divulgação Google

Assisti ao filme “A forma da água”, de Guillermo del Toro. Li as várias críticas a ele, mas me tocaram as palavras de Edgar Vianna de Andrade, que escreve pra Folha da Manhã, e as de Cristovão Tezza, que escreve quinzenalmente para a Folha de São Paulo. Gostei do que Edgar escreveu e me decepcionei com a avaliação que Tezza fez do filme. Ele disse que o trabalho de Toro é uma amontado de lugares-comuns e do politicamente correto. Que o amor da mulher pobre e muda pelo híbrido de homem e peixe é uma forma de zoofilia. Considero Tezza um dos quatro melhores escritores brasileiros da atualidade e esperava dele uma leitura multidimensional do filme.

Informo que também comecei a ler a “Epopeia de Gilgámesh” (não é Gilgamesh, como eu pensava) na forma em a estabilizou Sin-léqui-unníni por volta de 1300 a. C. na Mesopotâmia. Essa forma tornou-se clássica. Ela foi traduzida diretamente do acádio por Jacyntho Lins Brandão, mostrando que o Brasil tem estudiosos competentes, geralmente desconhecidos e desvalorizados. Dele são também os comentários (Belo Horizonte: Autêntica, 2017).

Amo a epopeia. Já perdi a conta das vezes em que a li. Agora, Brandão a apresenta na sua forma original, em versos, como era comum se escrever nas civilizações anteriores à Ocidental Cristã, na qual vivemos. Com base em minhas leituras em prosa das aventuras de Gilgámesh, sustentei que Shámhat, uma meretriz sagrada, desempenhou um papel fundamental na humanização de Enkídu, um híbrido de animal e humano forjado em argila pela deusa Arúru para destruir Gilgámesh.

Informado dos planos celestes, Gilgámesh enviou ao encontro de Enkídu um caçador e Shámhat para deter o híbrido. Enkídu tinha o corpo coberto de pelos e vivia entre os animais, pastando com eles. Uma estrofe do grande poema em doze tabuinhas escritas em cuneiforme, diz: “Quando os bichos se aproximem do açude, /Tire ela a roupa e abra seu sexo. /Ele a verá e chegará junto dela, /Estranhá-lo-á seu rebanho, ao que cresceu com ele.”

Noutra estrofe, o caçador diz para Shámhat: “Este é ele, Shámhat! Oferece os seios! /Teu púbis abre e teu sexo ele toque! /Não tenhas medo, toca seu alento! /Ele te verá e chegará junto de ti”. Resultado do encontro: “Seis dias e sete noites Enkídu esteve ereto e inseminou Shámhat.” A partir de então, Enkídu foi rejeitado pelos animais. Nas notas à primeira tabuinha, Brandão comenta: “Shámhat é uma personagem-chave no relato, pois a ela compete humanizar Enkídu, tanto por meio do contato sexual quanto pelos ensinamentos relativos à vida civilizada.”

Nos anos de 1990, escrevi e publiquei uma interpretação muito próximo desta. Meu texto caiu nas mãos de um professor de história da Antiguidade, que o leu e o considerou superficial e impressionista, sobretudo porque eu não conhecia o acadiano. Vingança do tempo ou interpretações semelhantes, embora eu não leia textos em cuneiforme.

Desde que li sobre a importância da mulher no processo de evolução biológica dos hominídeos em Edgar Morin, sustento esse ponta de vista. Em busca de seu prazer, a mulher exigiu do homem o sexo frontal. Antes, acredita-se que o homem abordava a mulher somente por trás sem pedir licença. Hoje, seria estupro, no mínimo assédio. Os tempos são outros. A mulher deve ter ensinado aos homens como fazer fogo, rir, chorar, fabricar vasos e cestas. Quase todas essas conquistas da humanidade foram mostradas por Jean-Jacques Annaud em “A guerra do fogo”, filme de 1981.

No livro do “Gênesis”, Eva tem papel fundamental na história da humanidade, embora os religiosos não gostem do que ela fez ao aceitar a tentação da serpente e ao tentar Adão. Em termos simbólicos, a consciência do casal aflorou e os dois cobriram suas vergonhas. Expulsos do Paraíso, os dois se humanizaram como Enkídu, que foi tentado por uma mulher.

Na história original de King Kong, tantas vezes refilmada depois do primeiro filme de 1933, o grande macaco exigia oferendas dos nativos de uma ilha para aplacar sua ira. Essas oferendas deveriam sem enviadas na forma de mulheres. Kong gostava delas, mas nada podia fazer. Ainda que se possa admitir a prática de zoofilia com macacos, a genitália de Kong era muito grande e causaria nas mulheres o que ele, de outra forma, causava: a morte delas. Kong nunca teve uma fêmea a sua altura. Com a chegada de uma loira belíssima na ilha, Kong logo se apaixonou por ela. Foi a sua perdição. O macaco foi acorrentado com dificuldade pela tripulação de um navio ocidental e levado como atração para os Estados Unidos, onde acabou morrendo. A mulher sentiu-se culpada. Kong morreu virgem.

Em “O monstro da lagoa negra”, de 1954, o híbrido de homem e de peixe vive sozinho na selva amazônica. Não se sabe como ele nasceu. Mas, ao ver uma mulher na expedição científica que o encontrou, ele fica sexualmente excitado. Deixaram-no em paz até aparecer Del Toro e colocá-lo no filme “A forma da água”. Novamente, ele se apaixona por uma mulher, agora sendo correspondido. Ela desperta sua humanidade com o sexo, como aconteceu há cinco milênios com Enkídu. E Tezza tomou a história ao pé da letra.

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