Vardir

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(imagem: Sajjad Saju, por Pixabay

Nos idos de março de 1951 mudamo-nos de Brazópolis para Piracicaba. Não havia mais vagas na Escola Normal, onde deveria fazer a segunda série do Curso Ginasial. Minha querida tia Mariinha (Maria Celestina Teixeira Mendes Torres) conseguiu-me vaga e me matriculou no Colégio Piracicabano. Pagou-me aquele ano letivo, em função de nossa precária condição financeira.

Para mim foi uma festa estudar naquele Colégio lindo! A sala da segunda série masculina ficava no segundo andar do Edifício Trinity. À esquina da Boa Morte com Rangel Pestana. Era minha primeira classe masculina. As anteriores eram mistas. Eram cerca de quarenta alunos, cujos nomes comecei a decorar já na primeira aula que tive lá: aula de Português, com o Professor Veiga, sisudo, mas uma verdadeira pérola, como diria mamãe.

Lembro-me do início da “lista de chamada”: Abemar, o melhor aluno da turma, Agmar, Alexis Stepanenko, Antonio Olívio Meneghini, Antonio Celso Beluca…! Que delícia aqueles nomes tão sonoros! Piracicaba me causava um entusiasmo inesquecível. Saíra de uma cidadezinha (de luz), para uma “Metrópole” que possuía três linhas de bonde! Quase comprei um!

A atenção dos colegas me atordoava! Não havia carteira para mim, ainda, já estávamos em abril, eu perdera pouco mais de um mês de aulas. Fora avisado que se faltasse um dia seria reprovado por faltas. Estava meio atordoado, “encorujado” num dos cantos da sala, no fundo. Um colega, Milton de Oliveira, levantou-se e foi me buscar no fundo da sala levando-me para sua carteira, dividindo comigo seu assento! Eu “babava” com tamanha demonstração de solidariedade. Todos me “paparicavam” e se divertiam com meu sotaque mineiro.

A segunda aula foi de Matemática, Professor Helio Padovani, bravo, mas profundamente interessado em que, todos, aprendêssemos suas “Razões e Proporções”! A terceira aula foi de História Geral, com a Professora Dona Dulcina, a primeira Professora! Apaixonei-me por ela no ato! Que coisa sensacional, elegantíssima, brava como deviam ser todas as Professoras de História que tive, mas altamente competente falando de Ataxerxes, um dos Reis Persas.

A última aula do dia foi de Música. O Professor, Maestro Benincasa, era uma figura: cabelos ruivos, longos e despenteados, batuta no sovaco esquerdo e a lista de chamada à mão direita. Muito sério e levemente afeminado. Não permitia que respondessem “presente” à chamada! Deveríamos unir a ponta o indicador direito ao meio do polegar direito, formando um círculo e movimentar, também em círculo a mão direita, ao lado da cabeça, em absoluto silêncio. Se ouvisse um riso, que por provocação se faziam ouvir, levantava-se, elegantemente e dizia muito bravo: “Senhores, não cabe o riso!”

Assim começou meu maravilhoso ano letivo. Cumpre ressaltar que antes do Professor Padovani adentrar à sala, havia um aluno meio transtornado, pensei que era por não ter feito a lição. Como já seria a segunda aula reparei na chamada do Professor Veiga que ele pronunciara errado o nome de um dos últimos alunos chamados. Ele dissera Vardir Chamma! Como Vardir? Milton me disse que o menino se chamava Vardir, mesmo.

Terminada a aula de Música acabara meu primeiro dia de aula. Saímos pelo portão da Boa Morte, fomos até a Pedro II, viramos e fomos até o largo do Mercado. Ali viramos em direção à Pedro I. Nós, quem, cara pálida! Você perguntaria. Sim, eu e Vardir! Ao chegarmos à Igreja Metodista perguntei-me, será que somos vizinhos? Assim, puxamos conversa e foi o início de uma grande amizade!

Tão grande que durou até domingo! Tornamo-nos inseparáveis! Gostávamos das mesmas coisas. Penso que só discordávamos em uma coisa: ele não fumava. Quase todo dia, após o almoço saíamos para que ele mostrasse Piracicaba. Em três tempos fiquei especialista em Pira, sabia o nome de todas as ruas centrais. Tomávamos os bondes e percorríamos a linha, em ida e volta. Cada vez conhecia mais Piracicaba e, também, nossa amizade se solidificou.

Passam-se os anos, o Sud, o Tiro de Guerra 36, o Científico, Vestibulares, foi quando nos separamos. Ele foi a Campinas, estudar Sociologia, conheceu Delza, que trabalhava com minha irmã Sonia na Secretaria da Educação. Casaram-se e ficamos longe por longo tempo. Encontramo-nos algumas vezes em Piracicaba. Com os avanços da internet nos reaproximamos. Ele e Delza estiveram duas vezes aqui em Porto Seguro. No domingo 25/07 ele se foi! Uma perda indesejada, mas esperada! “Hodie mihi, cras tibi”.

*Jairo Teixeira Mendes Abrahão, Professor Titular da ESALQ-USP.

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