João Bottene: o criador do motor a álcool para carro e avião (2)

João Bottene adotou um lema que, na realidade, passou a ser de toda sua família: “Não existem barreiras quando se quer fazer alguma coisa.” Foi como se estivesse antecipando o que seria a sua vida: querer fazer, enfrentar dificuldades, fazer.

A empresa ia de vento em popa. Aprovados os serviços pela Estrada de Ferro Sorocabana, outras locomotivas eram enviadas à oficinBottene em feita da indústria (São Pauloa na rua 13 de maio, as Mallet, Compaund, e as articuladas com quatro cilindros e 16 rodas. Por volta de 1929, João Bottene empregava 70 funcionários qualificados, muitos deles tendo aprendido ofício em suas próprias oficinas. E a sua influência e prestígio começaram, então, a incomodar. Pois ele, um gênio da mecânica e da música, não conseguia avaliar o poder e a força dos políticos. A política trouxe-lhe outra grande e penosa barreira, que ele, “por querer fazer”, precisou enfrentar.

Naqueles anos, a crise brasileira estava prestes a explodir coma queda da República Velha e, a partir de 1930, a ascensão de Getúlio Vargas. Em Piracicaba, o “samuelismo”, de Samuel de Castro Neves, e o “gonzaguismo”, de Luiz Dias Gonzaga, plantam suas sementes. João Bottene não se alia a grupos políticos mas passa a ser pressionado por candidatos,que buscam os votos de seus funcionários. É quando se dá , então, o confronto entre ele e Samuel de Castro de Neves: Bottene se recusa a pedir votos para os funcionários em favor de Samuel, defendendo o direito de cada qual votar conforme sua consciência. E paga o preço por sua convicção democrática: pouco tempo depois, a Estrada de Ferro Sorocabana cancela os pedidos para a Oficina Bottene.

A crise se instala, mas João Bottene recusa-se a dispensar seus funcionários.

Do “rink” à revolução

João Bottene está na contramão da política. E, ainda que gênio e visionário, nãoLocomotiva 2 em trabalho é homem de negócios. Para sobreviver, instala,em 1932, um “rink” de patinação num dos barracões da oficina. Havia criado a firma JB (iniciais de seu nome) & Cia. E a casa de lazer recebeu o nome nada atraente de “Meu Rink”. Durou pouco. Aquele não era o ramo de João Bottene. E, do “rink”, ele aceitou outro desafio, apaixonando-se por uma idéia libertária: a revolução paulista de 1932, que exigia, de Getúlio Vargas, uma nova Constituição para o Brasil.

Dona Maria Bottene ficou cuidando do que restara da oficina e lá se foi João alistar-se como voluntário da Revolução Constitucionalista. E foi com seu carro Ford-29, com o motor já movido a álcool como combustível, que João Bottene chega a São Paulo, apresentando-se como voluntário nas oficinas da garagens da Ponte Pequena e, como sargento, assumindo o cargo de encarregado do setor automotivo da Prefeitura de São Paulo.

Em suas experiências para auxiliar os revolucionários, João Bottene criou uma mistura de combustível à qual deu o nome de “Combustível Constituição”: era o resultado de uma adição que fizera, com êxito, de 5% de óleo de mamona como aditivo no álcool. Coma mistura, os revolucionários, já carentes de recursos, economizavam combustível. Mas João Bottene não se satisfez: com aquiescência do Estado Maior da Revolução Paulista, retornou a Piracicaba e, em sua oficina, passou a fabricar granadas de mãos.

Bottene e Morganti

Em 1938, Piracicaba entusiasmava-se com a explosão desenvolvimentista na agroindústria canavieira, promovida por Pedro Seção de Calderaria da MausaMorganti, dono da Refinadora Paulista e da Usina Monte Alegre. Nesse ano, João Bottene vende, para o próprio Pedro Morganti, as oficinas e passa a ser gerente técnico da usina. Faz uma exigência que Pedro Morganti aceita: levar toda a sua equipe de trabalho formada, entre outros, pelo genro Renato Henrique Benatti, Antônio Ercolini, Antônio Querubim, Reynaldo Lucas, Miguel Balesteiro, Silvio Bottene, Ambrósio Aronson, Luiz Gonzaga Medeiros.

Dessa união, surgem grandes realizações. João Bottene e sua equipe começam a fabricar peças e a reformar os equipamentos da usina, a fazer bombas centrífugas, redutores de velocidade, cozedores a vácuo, evaporadores e máquinas especiais. E o grande feito: João Bottene projeta e constróia primeira locomotiva a vapor do Brasil.

As locomotivas

Foram duas as locomotivas pioneiras que o Brasil viu João Bottene construir na Usina Monte de Pedro Morganti. As caldeiras foram elaboradas utilizando a solda elétrica, com eletrodos Lincoln, que substituíram os arrebites da época. A iniciativa foi de tal forma revolucionária que a fábrica de eletrodos Lincoln enviou engenheiros para inspecionar os serviços, aprovando-os com distinção. Para avaliar-se o feito de João Bottene, a revista Lincoln fez publicar, nos Estados Unidos, uma foto da caldeira produzida em Piracicaba.

Uma locomotiva de frente dupla foi também fabricada por João Bottene, acionada porBreve da turma da Zaira Bottene dois motores automotivos transformados para usar o álcool-motor como combustível. A primeira locomotiva foi batizada com o nome de “Fúlvio Morganti”, bitola 600mm., funcionando na usina no transporte de cana, lenha ,açúcar e álcool. Foi vendida,em 1961, para a Cia. Brasileira de Cimento Portland Perus, permanecendo em funcionamento até os anos 70. Atualmente, está num galpão em Cajamar (SP), Bairro do Gato Preto.

A segunda locomotiva, bitola 800mm., recebeu o nome de “Dona Joaninha”, tendo funcionado na Usina Tamoio, em Araraquara, também de propriedade da família Morganti. Depois, serviu à Estrada de Ferro Cantareira. Atualmente, encontra-se na Praça 7 de Setembro, em Guarulhos, estacionada em uma réplica da Estação da Cnatareira Transway.

Mas a inventividade não parava. Para inspecionar a linha da estrada de ferro internada usina, João Bottene transformou um carro Fiat de Pedro Morganti num “troley”, adaptando, nele, rodas de locomotiva. O “troley” seguia pelos trilhos do trem e, para retornar, girava em torno de si mesmo, retomando a linha férrea.

Ao chegar a II Guerra, João Bottene, tentando solucionar o problema de racionamento de combustível, projetou geradores a gasogênio, adaptando-os em automóveis e caminhões da frota da usina. Os carburadores dos motores foram substituídos por misturadores de gás e ar e utilizavam-se de carvão vegetal de eucalipto.

O Aeroclube

Piracicaba não tinha, na realidade, um aeroporto. Era um “campo de aviação”, uma pista muito curta, localizada próxima à ESALQ. O novo aeroporto de PiraMausa:Matarazzo, Artêmio, Leopoldo, Mário Dedini cicaba nasceu de uma iniciativa conjunta de João Bottene e Pedro Morganti. O terreno foi doado por Pedro, o atual Aeroporto Pedro Morganti. Mas foi João Bottene o grande responsável por sua idealização e realização, incluindo o Aero Clube de Piracicaba. Estimulado por amigos – especialmente por João Visioli, Mário Maldonado, Pedro e Alcebíades (Tito) Bottene e dr. Antônio Cera Sobrinho – João Bottene decidiu-se a fundar o Aero Clube.

Com recursos próprios, aqueles pioneiros adquiriram um avião biplano, marca Muniz 7, bi-place, com motor Gipsy Major, invertido, de fabricação nacional. Com o novo aeroporto, o avião precisou ser conduzido, sem asas, pela rodovia, da pista anterior para hangar no terreno doado por Pedro Morganti. A façanha foi realizada pelo piloto Tito Bottene, que se destacou como um dos grandes ases da aviação piracicabana.

E foram Tito e Pedro Bottene os primeiros alunos do Aero Clube criado por João Bottene.

“Borboleta Azul” e Zayra

João Bottene, empolgado com a aviação, tirou o brevê e estimulou toda a família a acompanhá-lo. Comprou um avião Piper Club J3, que tinha sido totalmente destruído num acidente e, com paciência, passou a reformá-lo. Quando realizou o primeiro vôo, lá estava o orgulho da família Bottene: o avião “Borboleta Azul”, que, durante um ano, serviu aos Bottene para viagens e passeios.

Mais pioneirismo estava, porém, ainda por vir. O Aero Clube abrira curso para mulheres e não aparecera candidata. Os Bottene não tiveram dúvidas: lá estava Zayra, filha de João, que, muitas vezes sem o pai saber, pilotava o “Borboleta Azul”,com a cumplicidade do irmão Artêmio. Nas atas do Aero Clube de Piracicaba consta o pioneirismo: no dia 10 de março de 1941, sob a presidência de Mário Maldonado e tendo João Bottene como vice, consignava-se que, não tendo outras candidatas, Zayra Bottene havia sido convidada a fazer o curso, aceitando de imediato.

No dia 26 de outubro de 1941, Zayra Bottene diplomou-se, tornando-se a primeira aviadora de Piracicaba e a terceira do Brasil. Recebeu o brevê internacional, como aviadora civil, pela Fedération Aeronautique Internationale – Aero Club Brasil. Mas o “Borboleta Azul”, levado a São Paulo para uma revisão final e para confirmar o prefixo PP-TXT, caiu, sendo totalmente destruído. A tristeza de João Bottene foi indescritível.

Fundador da MAUSA

Em 1947, João Bottene, mais o engenheiro-químico Romeu de Souza Carvalho, deixou a Usina Monte Alegre. João e Romeu estavam dispostos a criar uma indústria de acessórios para usinas. E criaram, num barracão da rua Santa Cruz – onde ainda está localizada – aquela que seria uma das principais indústrias piracicabanas: MAUSA – Metalúrgica de Acessórios para Usinas S.A.

Como sócios de João Bottene e Romeu de Souza Carvalho, estavam empresários já de grande destaque em Piracicaba, dos quais eram amigos pessoais: Mário Dedini, Dovílio Ometto, Lino Morganti, Arnaldo Ricciardi e Armando Dedini. Em 1948, a nova indústria entrou em atividades.

Sendo amigo pessoal de Emílio Romi, de Santa Bárbara d’Oeste, João Bottene adquiriu os primeiros tornos daquela empresa. O objetivo de João era conseguir centrífugas para açúcar e, em seguida, filtros rotativos a vácuo. Conseguiu-o. E, além delas, outras máquinas foram inventadas por João Bottene, levando a MAUSA a ocupar lugar único na indústria brasileira. Os primeiros compradores das centrífugas foram as usinas Costa Pinto, Paranaguá, Santa Lúcia, de Cillos, Zilo Lorenzetti, São Gerônimo, São Vicente.

A ascensão da Mausa foi tão rápida e brilhante que, em pouco tempo, construíram-se outros prédios para fabricar equipamentos como pontes rolantes, secadores de fermento, bombas centrífugas, etc. A dupla João Bottene e Romeu de Souza Carvalho implantara uma revolução na modernização das usinas brasileiras.

Em 7 de outubro de 1954, João Bottene faleceu. O gênio da mecânica, em Piracicaba, não teve substituto. (FIM)

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