A casa da rua Maria Elisa

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A casa na rua Maria Elisa, 365, na Vila Rezende, em Piracicaba, está vazia. Antiga e com fino acabamento que se faz notar no chão de tacos de madeira nobre com paginação de mosaicos ao estilo Versailles, remetendo à época imperial. Seus últimos móveis foram anunciados e vendidos em sites de oferta na internet, mas não foram vendidas ao acaso, para qualquer interessado. Os compradores não sabiam, mas André Luís Azevedo Olivieri, o vendedor, os selecionara com muito critério e cuidado. Desde a morte da mãe, Isabel, em abril de 2023, vira-se responsável por se desfazer e dar melhor destino aos móveis, aos objetos e às roupas dela.

Quando criança, correra e brincara pelas salas, pelos corredores e pelo quintal junto ao único irmão mais velho, Carlos Alexandre. Estudou no Colégio SESI 85 até a oitava série e, depois, o ensino médio, no Anglo. Gostava de sair com os amigos nas baladinhas de domingo da Croco e da Mr. Dandy, e lá experimentaram os primeiros cigarros. André começara a fumar aos 15 anos. Estudou engenharia civil na EEP — Escola de Engenharia de Piracicaba — e trabalha atualmente como gerente da empresa TRAPISA.

A casa vazia da rua Maria Elisa traduz, em André, um sentimento de esvaziamento, com a saída de cena de um a um de seus moradores. O primeiro que partira, em 2006, fora o pai, Wilson, vítima do tabagismo, aos 68 anos de idade. Oito anos antes de sua morte, recebera o diagnóstico de aneurisma de aorta abdominal, mas não aceitara se submeter ao tratamento proposto. Tivera muito medo, pois tinha a mesma doença do avô de André, que morrera em 1983, na mesa de cirurgia, em Campinas — a única opção terapêutica na época.

A aorta é a maior artéria do corpo humano. Quando está dilatada, em nível do abdome, a doença se chama aneurisma da aorta abdominal. Mais comum em homens do que em mulheres, numa proporção 5:1, tem como causa o fator hereditário e, principalmente, o hábito de fumar. O cigarro destrói uma proteína fibrosa e elástica na parede dos vasos sanguíneos, a elastina, facilitando a ocorrência do aneurisma. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Vascular recomenda que homens e mulheres a partir de 65 anos com histórico de tabagismo devem fazer o rastreio com exame de ultrassom abdominal. Se não tratados, os aneurismas com mais de 5 centímetros de diâmetro têm grande risco de romper, com elevadíssima taxa de mortalidade.

O tabagismo levaria também o irmão, precocemente, aos 55 anos. Diferente de André, Carlos Alexandre levara a vida intensa e displicentemente, despreocupado com a alimentação e com a saúde. Em 2022 fora vítima de um infarto agudo do miocárdio.

Após o falecimento da mãe, que sempre incentivara os filhos a parar de fumar, André resolveu tomar o protagonismo de sua vida. Matriculou-se em aulas de natação na Academia Position, reduziu a cerveja, marcou consulta comigo e, depois de 32 anos, viu-se livre dos cigarros. Encontra-se na fase de prevenção de recaídas onde a vigilância deve ser constante.

Casado com Tatiane, há 15 anos, moram sozinhos numa casa no Jardim Água Viva, desde que o enteado Lucca, em 2018, formado advogado, saíra de casa. Dias atrás o moço, cheio das formalidades, convidou a mãe e o padrasto para tomar um lanche. Quando viu Lucca entrar com a namorada Júlia, na Lê Pinguê, sentiu o coração palpitar. Anunciaram que a jovem estava grávida e que eles seriam avós. Seguiu-se um alvoroço de felicitações, de abraços apertados e de vivas. André pediu que esperassem e saiu em busca de uma caixa de Nicorette na farmácia. A notícia lhe dera vontade imensa de fumar.

A TRN — terapia de reposição nicotínica — é a escolha mais utilizada, no mundo, no tratamento do fumante, por sua comprovada segurança e efetividade. As TRN entregam nicotina de forma lenta e contínua (adesivos) ou de forma rápida e quase instantânea (gomas ou pastilhas), evitando ou reduzindo a fissura e os sintomas desagradáveis da síndrome de abstinência.

André também parou completamente de ingerir álcool. Receia não saber o que pode lhe acontecer se voltar a beber. Vive com os sentimentos à flor da pele. Numa visita à casa da Rua Maria Elisa, depois das recentes chuvas de verão, chorou ao se deparar com o lindo piso à Versailles arruinado. A calha entupira e inundara de água, a sala. Com a proximidade do Natal, sabe que se reunirá com a pequena família, dentre os quais o sobrinho Bruno, com a mesma idade do primo, mas muito diferente deste, pois imita o pai nas extravagâncias da vida, inclusive no tabagismo. No dia 24 de dezembro, só para garantir, André vai comprar outra caixa de gomas Nicorette. 

*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.

*Erasmo Spadotto – cartunista e chargista, criou a ilustração especialmente para este artigo.

A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.

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