Gaiolas

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Do alto do Morro do Fogão, a natureza pulsa em tons de verde. Em primeiro plano, a vegetação rasteira, composta por gramíneas e por alguns arbustos, permite a visualização do incrível horizonte que se descortina. Pouco à frente, o precipício, de cerca de 100 metros, marca o limite do mirante. Em dias ensolarados, o tom verde-claro colore a vegetação mais próxima, cortada pelo alaranjado dos paredões de pedra. Adiante, ele muda para verde-folha, pintando os contornos dos mares de morros, ou das meias laranjas e, bem ao longe, na linha do horizonte, o verde-oliva funde-se ao cinza, dando-lhe a impressão de esfumaçado. A formação rochosa, localizada entre as cidades de Brotas e de Itirapina e distante 244 quilômetros de São Paulo, atrai visitantes de toda a região que chegam em carros de passeio, em motos, em grupos a pé ou nas gaiolas de trilha. O visual que se descortina do alto do morro recompensa o grupo de amigos de Fábio Rogério Cabrini e de sua esposa Viviane, de São Pedro. Aos finais de semana, reúnem-se em suas gaiolas e percorrem as trilhas da região: a “trilha do escravo”, que beira um riacho; a “trilha da véia do queijo”, na serra do Itaqueri; a “trilha da serrinha de pedra”, entre tantas outras.

A gaiola de Fábio, montada com o motor de um carro Volkswagen Golf, tem pneus largos de trator, um guincho, a estrutura tubular robusta e a suspensão reforçada, que permite enfrentar terrenos difíceis e desafiadores, como atoleiros, trechos íngremes e rochosos – elementos para aventuras radicais em meio à natureza. Depois que o casal parou de fumar, ela em fevereiro de 2023 e ele em agosto do mesmo ano, sentem de modo diferente o aroma fresco do campo.

Na infância, nos anos 1980, Fábio aprendeu a fumar imitando o pai, José Roberto, de quem também aprendeu o ofício de chaveiro. Fez, à distância, o curso apostilado do Instituto Monitor e, aos 13 anos, largou os estudos sem concluir o primeiro ano do Ensino Médio, após ter sido expulso da escola por estourar uma bomba no banheiro. Assim, assumiu o comando da “Chaveiro e Carimbos Cabrini”, no centro da cidade de São Pedro.

Colecionava maços e caixas de cigarros e organizava-os, meticulosamente, em pastas. A coleção contava com mais de mil itens, desde os tradicionais Marlboro, Free, Belmonte, Lucky Strike, até as marcas importadas, entregues pelos Correios. O hobby distraíra-o, mas também contribuíra para reforçar o vício no tabaco – de todos os maços tirava um cigarro para experimentar e dava os demais ao pai.

O Sr. José Roberto, aposentado, com 76 anos, sofre de enfisema pulmonar, mesmo tendo abandonado o vício há 20 anos. Tinha apenas 7 quando começara a fumar – uma carga tabágica altíssima, que, um dia, certamente, cobraria seu preço.

Informação importante e relevante nas consultas, a carga tabágica calcula-se multiplicando o número de maços fumados por dia pelo número de anos de tabagismo. Correlaciona-se ao maior risco de desenvolvimento de doenças tabaco-relacionadas. O Hospital de Barretos, referência em tratamento do câncer, recomenda a realização de tomografia computadorizada para rastreamento do câncer de pulmão, para pessoas entre 55 e 74 anos de idade e com carga tabágica maior que 30 maços-ano. Aos 49 anos de idade, Fábio tem uma carga tabágica altíssima: 75 maços-ano (consumiu dois maços e meio de cigarros por dia, por 30 anos)

Fábio e Viviane cresceram juntos, na vizinhança de São Pedro. Aos 24 anos, casaram-se. Em 2009, assustaram-se quando D. Benedita, mãe de Vivi, sofrera um enfarte e quase morrera. O casal decidira parar de fumar. Vivi conseguiu de pronto, com algum sofrimento. Fábio, numa espécie de preparação, marcou a data dali a três meses, quando voltassem da praia. Consumindo incríveis 50 cigarros por dia, tinha feridas no céu da boca e usava bombinhas inalatórias – Alenia, Berotec e Atrovent – a cada três dias para aliviar a falta de ar. Sentiu dificuldade e quase desistiu. Conseguiram permanecer em abstinência por seis anos até que, em 2016, numa pescaria com os amigos, fumaram alguns “paieiros” e recaíram.

Determinados a enfrentar, novamente, o vício, pediram minha ajuda e, com o tratamento adequado que envolveu o uso temporário de fármacos e de terapia de reposição nicotínica, conseguiram, mais uma vez, livrar-se do tabagismo. Sabe-se que somente 5% das pessoas que tentam parar de fumar sozinhas têm sucesso. Entres elas, a chance de uma recaída é de 50% nos anos que se seguem, segundo dados da revista americana Psychology and Helth. Mas ela não deve ser encarada como fracasso. A cessação depende de várias etapas e o processo psicológico pode ser longo, daí a importância de acompanhamento especializado.

Fábio conta que tem um cofrinho onde, todos os dias, desde quando parou de fumar, deposita vinte reais – dinheiro que queimava com cigarros. Diz que vai abri-lo ao completar um ano livre do vício – no 8 de agosto de 2024. O dinheiro, usará para viajar com a esposa. Até lá, com mais fôlego e com mais poder de apreciar melhor os aromas e os sabores, vai subir e descer a serra de São Pedro em sua gaiola. E se, na curva da estrada, não encontrar um bar ou uma venda para almoçar, poderá assar uma carne com o arado e o carvão. E deverá escolher, para combinar com o seu bom-humor, uma paisagem clara e bela, como um céu sem nuvens.

*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.

A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.

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