“In Extremis” (86) – Enquanto isso…

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“Não tenho qualquer dúvida: o homem é herdeiro da criança que foi.” (foto de Pritam Kumar, no Pexels)

Não tenho qualquer dúvida: o homem é herdeiro da criança que foi. Para o bem, para o mal. Somos qual a página em branco que, dia a dia, está a receber impressões. Hoje, uma gota de azul; ontem, um pingo de vermelho. E um borrão, um rabisco. Aos poucos, compõe-se, assim, uma paisagem radiante ou sombria. A criança encantada gera o homem que se encanta. E o desencanto, também.

Nestes nossos dias assustados e assustadores, hesitei, diversas vezes, em comentar a beleza que, apesar de tudo, continua existindo. Algo me bloqueava, como se, ao fazê-lo, viesse a faltar com a solidariedade a tantos sofredores com suas perdas, separações, dores. Mas eu me perguntava o porquê da hesitação. Se noite e dia convivem, se o belo e o feio coexistem – por que hesitar? Foi quando – sei lá se numa inspiração, se numa advertência – lembrei-me de um episódio da infância. Da tão distante infância.

Vivíamos, então, a tragédia da morte de minha irmãzinha num brutal acidente, vitimada por um caminhão. Eu tinha cinco anos. Meus pais pareciam ter deixado de existir. Perderam todas as forças. Lembro-me deles deitados lado a lado, chorando. A fome nos rondava. E, então, fui levado para a casa de tios meus, em outra cidade. Lugar aprazível, sereno. Tudo era alegria. E farta, a mesa. Lembro-me de ter-me perturbado com aquele contraste entre luz e sombra, o sombrio de minha família destroçada.

Num dia, ao almoço na casa deles, saí correndo, criança perturbada por sentimentos que eu não entendia. Minha tia servira-me um prato apetitoso, comida abundante, cheiro sedutor. Não suportei. Corri, fugindo. Era-me impossível comer sabendo que meus irmãos poderiam estar passando fome. Foi – depois, entendi – um sentimento de solidariedade tão violento que me iria acompanhar ao longo da vida. Se parecer ter sido bom, generoso, não o foi. Acontecera-me uma dor sentimental, sem justificativa racional. Pois o certo teria sido alimentar-me, fortalecer-me para – numa decisão justa – lutar contra a possível fome de meus irmãos. Não se pode, num naufrágio, deixar-se afogar com os afogados. Há-que salvar-se e tentar salvá-los.

Algo semelhante ocorreu-me nessa pandemia. Penso ter querido sofrer com tantos outros sofredores, uma solidariedade mórbida. E, nessa morbidez, deixei de contar as maravilhas que, apesar da pandemia, continuavam acontecendo. Ora, quem vira aquele filete de Lua, brilhando na imensidão do azul matinal? Pois, eu tinha visto. Quem ouvira o dueto do bem-te-vi com a rolinha? Pois, eu ouvira. No entanto, por que não contei? Por que não entendi que, apesar de tudo, seguia, a natureza, o seu curso deslumbrante?

Confesso o meu mal estar por equivocar-me com uma solidariedade que pensei espontânea. Permaneci no meu canto, como permaneço há décadas. E as belezas do cotidiano tão simples pareceram-me opressivas, culposas. E, no entanto, a vida continuava pulsando apesar de um vírus que, na realidade, é, apenas, parte do todo. De que fazemos parte e, não, de que pensamos ser donos.

Eu vi botões de rosa florindo, colorindo o canteiro. E, dias depois, vi formigas devorando as pétalas tão tenras. Vi abelhas e beija-flores sugando o suave fruto da terra. E, pela primeira vez, vi um ninho de urubu, atrás de uma imagem de Nossa Senhora. O gato tentava caçar o calango. A brisa e as folhas das árvores sussurravam coisas. Schumann, Schubert fruíam da caixa de som. Vida e morte, harmonia e luta pela existência conviviam num mesmo espaço de terra.

Enquanto isso, um novo vírus chegara. Apenas mais um.

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