O ovo da serpente

indio

PAIAGUÁS: Desenho Autor desconhecido/Acervo do Hotel Paiaguás Palace – Cuiabá/ MT

O povo indígena – vivendo naquelas terras como que em oração, mergulhando naquelas águas em batismo diário – não sabia haver, nas proximidades, uma criatura diferente, estranha, de pele branca como se não tomasse sol. Eram tão poucos os estranhos que não chegavam a preocupar. Desde 1693, o homem branco tentara estabelecer-se às margens do rio, numa sesmaria adquirida por Pedro de Moraes Cavalcanti. Já se sabia, então, da movimentação de pequenos grupos humanos, que percorriam trilhas de índios.

A partir daquelas trilhas, o homem branco construiu o que chamou de “estrada velha do sertão dos Bilreiros”, para passagem de gado e cavalgaduras. Excursionavam por toda a região das “paragens de Capivari o rio Piracicaba e os campos de Araraquara.” Foi em 1721, porém, que o ovo da serpente se tornou visível. O sertanista Felipe Cardoso já estava fixado no porto do Rio Piracicaba e uniu-se ao desbravador Luis Pedroso de Barros, no esforço de abrir o caminho até Cuiabá. E o caminho teria que passar pelo rio Piracicaba, “logo abaixo das corredeiras do salto do mesmo nome”.

Felipe Cardoso, mesmo após o fracasso do empreendimento, requereu terras de sesmaria, circundando o porto do rio Piracicaba, as mesmas adquiridas por Pedro de Moraes Cavalcanti.

Ele declarou querer povoar aquelas terras, o paraíso dos índios, o novo Éden. A serpente tinha o seu ovo procriador, transformador, como ocorrera com Eva e Adão. Felipe Cardoso – com negros escravos e tentando subordinar os índios – conseguiu introduzir a maçã transformadora, o pecado original para a nação indígena.

E a história registrou que um primeiro índio foi batizado pelo ritual católico. Seu nome: Tanásio.

A nação paiaguá foi massacrada, extinta. O mesmo ocorreu com o povo caiapó. Um famoso e velho sertanista, Manoel Arzão, aos 80 anos, comandou esse massacre, por ordem do governo da Província de São Paulo. O navegador Teotônio José Juzarte registrou sua incursão a estas paragens, com desenhos e descrições do que vira. Eram matas virgens, habitadas por negros e os que eles chamavam de selvagens, o homem branco enfrentando animais.

Restaram apenas poucos e velhos guerreiros para contar, relembrar, prantear aquilo que fora o canto da terra. O canto e o pranto deles, transformo-os, neste livro, em canto e pranto também meus.

 

Tristeza do caiapó

O branco só quis destruir, desmatar, matar.

Chamou-me de bilreiro sem saber que, obreiro, eu cuidei da terra, plantei, semeei, fiz guerra, o primeiro a defender o paraíso. Tive juízo.

Eu sabia do presente que os deuses me haviam dado.

Inteligente, não cometi o pecado de destruir a bem-aventurança.

Conheci a bonança, cuidei do jardim, usei do fogo para fazer clareira, fogueira, plantando cana, feijão, amendoim.

Vivi de esperança. Mas o homem branco, com sua ganância, ouviu o canto da serpente.

E matou a minha gente. A estrada para o Mato Grosso, estrada de pó, chão danoso. Foram trilhas que meu povo desbravou primeiro. Estrada do caiapó, não do bilreiro.

 

O pranto do paiaguá

Eu, paiaguá, quis transformar a benção em eterna canção.

Canção que ainda canto, no pranto do rio que mora em mim.

Fui ingênuo ou ambicioso demais, buscando mais do que já tinha no Piracicaba.

Minha tribo se encantou com outro rio, que o Piracicaba, generoso, recebia em seu leito, o rio caudaloso, Anhembi dos nambus que se tornou o Tietê dos homens nus.

As tribos assistiam, então, a seu jeito, o Piracicaba encontrando – pai generoso – um novo rio, caudaloso, em seu leito.

Parecia de um outro mundo. Águas barrentas, talvez sangrentas.

Rio majestoso, impetuoso e fundo.

Tentei evitar o que viria, tomado de sobressalto: o que aconteceria com o Piracicaba sereno, lago plácido, sem cachoeira nem salto?

Nicho de beleza, pureza e delicadeza de nosso mundo?

Quis evitar o Tietê, sua tristeza e dores – saga de Adão e a perda de seus amores.

Mas nossas tribos – paiaguá, caiapó e carijó – reabriram a porta da velha história, até então esquecida na memória

E lá estava a serpente à espreita – o homem branco – na busca do tesouro. Em Cuiabá, bem onde brotava o ouro.

Piracicaba, o paraíso, lugar onde o peixe para, seria apenas o caminho.

E eu, paiaguá, entendi: a água pode virar vinho, sangue nos descaminhos.

E da doçura da terra anunciou-se a guerra.

A história repetir-se-ia: a serpente venceria.

E, com ela, o mal, nosso pecado original.

 

Bilreiros?

Bilreiros era o nome que se dava, também, aos índios da nação caiapó, tribo aguerrida, mas que usava de sua habilidade com o fogo para fazer roças, plantações, voltando a vagar após as colheitas.

 

Primeiro índio batizado

O projeto de construção da estrada até Cuiabá exigiu um recenseamento dos habitantes do local, de brancos, negros, índios tidos como selvagens e índios civilizados. Segundo Leandro Guerrini, constatou-se a existência de diversos deles, identificando-se apenas um com nome cristão: Tanásio. Seu batismo se deu em 12 de abril de 1722.

Saiba mais sobre o livro Piracicaba, um rio que passou em nossa vida, de Cecílio Elias Netto.

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