Rio, sacramento da vida

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Foto: Fran Camargo

Nem todo o sagrado é divino. Mas todo o divino é sagrado. Os rios são, desde o início da Criação, tão sagrados que, muitas vezes, foram venerados como divindades. O curso de suas águas é a corrente da vida e da morte. Para os gregos, eram quase divinizados, filhos, os rios, que seriam do Deus Oceano, pais das Ninfas. Para os judeus, sagrados são os quatro rios do paraíso: Indo, Ganges, Tigre e Eufrates. E uma lenda maometana narra que os rios Tigre e Eufrates surgiram das lágrimas derramadas por Adão ao ser expulso do Paraíso.

Ao longo da história, não me parece, pois, ser possível – a não ser por um processo ainda inacabado de profanação – separar o sagrado do divino na existência dos rios. Eles têm significados e significações verdadeiramente misteriosos, no sentido do “mysterium”, aquilo que não conhecemos. Se há o “mysterium” nos rios, há, portanto, o “sacramentum”. Pois ambas as palavras, na sua origem, significam quase a mesma coisa. São verdades escondidas, quase sempre iniciáticas. Assim, mergulhar num rio
sempre teve um significado, uma simbologia. Mas qual? Eis o que cada pessoa há de descobrir. Pois – estando entre o sagrado e o divino – o rio é símbolo da própria vida: da continuidade, da renovação, e do fim, ao juntar-se ao mar.

Para Santo Agostinho, sacramentos “são sinais que se referem ao divino”. Assim o rio é, também, um sacramento. De vida, de transformação, de fertilidade, de renovação. Sacramento que contém uma realidade oculta nele mesmo, tão misteriosa que apenas pode ser descoberta por cada pessoa. Um rio não é de todos, mas de cada um. Pois o curso das águas representa o nosso próprio caminhar, nessa corrente de vida e de morte. No rio, está a sinonímia de nossa vida: a caminhada em direção ao
oceano, em busca do acesso ao Éden; o revolutear das águas de nossos conflitos, que parece indicar o nosso desejo humano de não-ir, de ficar ou de retornar ao Princípio, que é a nascente da vida. E, também, a travessia, que é o obstáculo desafiante, esse de querer ir à margem oposta sem saber o que nela existe.

O rio – sacramento da vida – simboliza a existência humana, na sucessão de nossos desejos, sentimentos, intenções e a imensa variedade de desvios. Tido como sacramento, o rio, porém, não diviniza os homens. Pode abençoá-los e o faz. No entanto, mesmo quando e se envolvidos pelo divino e pelo sagrado, o homem carrega, consigo, a pesada herança do erro, da rebeldia, do orgulho, do pecado. Sacramentos e pecados convivem inseparavelmente.

Um rio, pois, talvez seja essa síntese da humanidade: a convivência diária entre o sagrado e o profano. Heráclito deixou-nos a lição irrepreensível: “Aqueles que entram no mesmo rio recebem a corrente de muitas e muitas águas”. São os mais variados banhos da vida, desde o batismo até a consumação. E
Platão acrescentaria: “Não conseguiríamos entrar duas vezes no mesmo rio”. O homem, porém, acredita que o seu seja um único rio. Precisa acreditar para não se desesperar.

Logo, é preciso saber que existe um rio para cada homem mergulhar em suas águas. Num sentido simbólico, mergulhar num rio significa, para a alma, entrar num corpo. E o corpo, como os rios
que desembocam no mar, tem existência precária, escoando-se como a água. Mas cada alma possui seu corpo particular, o efêmero de sua vida – o seu rio próprio.

O rio Piracicaba é o nosso rio sagrado, de origem divina. Um sacramento de vida que nos acompanha a existência do começo ao fim: batismo, confirmação, confissão, eucaristia, ordem, matrimônio, unção dos enfermos. Mas, também, onde vivemos os pecados humanos de todo dia. É o rio de cada um. E a história que começo a contar é a do meu rio Piracicaba, esse que passou e ainda passa por minha vida. Pela vida de cada piracicabano.

Saiba mais sobre o livro Piracicaba, um rio que passou em nossa vida, de Cecílio Elias Netto.

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